KISSANGES NA NOITE
Ano de 1950, Angola. Nova Lisboa. Ou antes, Huambo nome mais suave para o ouvido, apesar da pronúncia enérgica com o H aspirado tão peculiar aos Humbundos, como os "clics" o são aos Buchimanes. E foi exactamente na noite do Huambo: a minha primeira noite sozinho, fora de Luanda, que fui surpreendido por um som plangente, repetitivo como o de um piano de poucas notas, mas mesmo assim, agradável e apelativo em que, pela primeira vez me atrevi pelo escuro da noite africana. Era uma cidade, é certo, mas as cidades do interior Angolano daquele tempo seriam vilas em Portugal - na Metrópole como então se dizia – e estavam recebendo um grande impulso de desenvolvimento tão rápido como desordenado. Esta cidade desenvolvia-se em dois braços divergentes, desde o Centro que se formara junto da Estação do Caminho de Ferro de Benguela, seguindo um pela Granja que, deixando logo no início o Paço Episcopal à direita, daí em diante, só capim, alguns eucaliptos e cedros bordejavam o traçado, - o traçado apenas - da Larga Avenida que viria a ser, a caminho do Bairro Residencial só de vivendas. Á data a que me reporto, em princípio de construção. A outra futura Avenida era paralela à Via Férrea e, tal como a Granja, parecia ter quase um quilómetro, e iria terminar perto do Palácio do Governo da Província. Foi por esta última que me aventurei na intenção de percorrer apenas duas ou três dezenas de metros. Mas foi quando já decidira voltar para trás que o som que antes me soara longínquo, se intensificou e pareceu mais perto. Arrisquei mais uns hesitantes passos pela escuridão, e aos meus olhos, agora mais habituados ao escuro, deparou-se uma imagem que jamais esqueci: iluminado pela trémula luz de uma fogueira, que mal o aqueceria, um homem muito velho, mal cobrindo o seu pobre corpo seminu com um "Cambriquito," o agasalho comum aos mais pobres dos pobres. Era o guarda de um dos vários armazéns existentes aqui e além e já condenados a breve demolição para dar lugar à futura Avenida.Por fazer frente à linha férrea, só teria casas de um lado, o que viria a granjear-lhe o título de Avenida do Colete.
Por agora estamos ainda presos ao encantamento do som plangente que me atraíra no silêncio da noite africana. E então pude ver e ouvir de perto o kissange. Era das mãos secas daquele velho que brotava o som mágico que me guiara até ali. Quedei-me fascinado. A imagem era como que a materialização do som: eram indissociáveis. No silêncio e na escuridão profundos, recortado pela chama da pequena fogueira, o velho negro, de olhar vago, alheado de tudo em volta. Parecia não dar sequer pela minha presença. segurava nas duas mãos um pedaço de madeira onde estavam cravados por um extremo umas poucas lâminas de metal, dispostas como uma mão aberta. Eram estes "dedos" irregulares, que os hábeis dedos do velho negro usavam como as teclas de um piano, fazendo-as vibrar, tirando delas os sons diferentes conformes a sensibilidade de cada "dedo." Ali fiquei um tempo que não vivi, mergulhado num quase esquecimento. Pouco a pouco recuperei do êxtase e perguntei-me: o que faria ali, que guardaria aquele pobre velho tão frágil, junto de uma fogueira que mal o aqueceria, quase adormecido pelo som da sua própria música.?'' Como poderia ele defender um enorme armazém de porta escancarada e tão escuro e profundo, quanto era dado ver ? E o som dos kissanges acompanhou-me todo o caminho passando de uns para os outros a mensagem de nostalgia de um recém-chegado aos Trópicos. E outros armazéns se seguiram. E outros guardas. igualmente velhos; mais cambriquitos, e sempre o som dos "kissange" adoçando a noite. E persistia ia pergunta: que força protegia aqueles frágeis velhos e os valores à sua guarda? De onde lhes viria essa a força? Só muito mais tarde o soube: de si próprios, da sua idade, da Velhice, enfim! Do respeito pelos Velhos, tão enraizado na Cultura, nos costumes angolanos que não permitiria que alguém desrespeitasse um Velho. Em Angola o uso de "Mais Velho," ou O Mais velho, são sinónimos de consideração, respeito. Também é uso dar o tratamento de Mais Velho, mesmo a quem o não seja de facto mas por ser considerado como "O que Sabe Mais".
E é para mim muito triste ver o Kissange reduzido a objecto de falso artesanato para turista ver. Ao longo dos muitos anos que me permitiram correr Angola de lés a lés, muitas vezes ouvi o lamento do Kissange, mas nunca como naquela noite de mistério e nostalgia do Huambo, em 1950.
2 Comments:
Um livro. Tem que publicar um livro. Estas maravilhosas histórias devem ser lidas também pelas pessoas que não têm internet.
descobri o seu 'blog' por acaso - estava à procura de uma fotografia... ontem falaram-me de uma pessoa (que conheço por 3 graus de separação) que constrói "kissanges".
boa sorte para o 'blog' e o resto, obrigado por partilhar,
j.
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