segunda-feira, novembro 13, 2006

Isto já não ´+e...

“. . .ISTO JÁ NÃO É ÁFRICA!!!”Justificar

Assim ouvi dos"antigos" quando em 1950 aportei a Angola. Trinta anos depois, surpreendi-me a dizer o mesmo, quando eu próprio me tornara um "antigo". O Dr, Abel Pratas que foi durante a década de 50, Director dos Serviços de Veterinária, tinha uma ordem de classificação por antiguidade, muito própria. Dizia ele: " nos primeiros cinco anos são Ultramarinos; até aos dez anos são Ultramarotos¸ depois dessa data e até aos vinte, são Ultramalandros. Para cima disso, são VENÂNCIOS". Esta última classificação, radicava no "Ódio de Estimação" - aliás, muito bem correspondido - que nutria pelo Comandante Venâncio Guimarães Sobrinho, grande potentado do Sul de Angola onde possuía uma frota pesqueira em Porto Alexandre; fábricas de farinha e óleo de peixe, e ,Armazéns Frigoríficos em Moçâmedes . Uma Moagem em Luanda e:
"the last but not the least".Grandes Explorações Pecuárias na Província de Húila. E por aqui é que "o gato foi às filhós" do Dr. Pratas. Pisavam o mesmo terreno mas em posições, que diria, inconciliáveis. Aqui eu atrevo-me a dar alguma razão ao Director da Veterinária. Tive ocasião de ver, pelo menos, uma situação de grave abuso. Uma Fazenda de gado do Comandante estendia a vedação até menos de cinquenta metros de uma "Chimpaca" (Grandes reservatórios das águas pluviais, construídas pela Geologia e Minas, destinados a abeberar os rebanhos dos pastores nativos durante época seca.). Pois a Fazenda tinha instalado uma conduta de dentro para fora da vedação até alcançar a água da Chimpaca e desviá-la para uso do seu próprio rebanho. O dr. Abel Pratas tinha também os seus hábitos de velho funcionário público desde há muito investido em Cargos de Direcção . Ele tinha sido o Primeiro (?) Director da Estação Pecuária da Humpata,, situada no alto da Serra da Chela, a 1700 metros de altitude, local magnífico para passar férias, mas totalmente destituído de condições para estudar e aclimatar gado bovino que depois iria ser criado em condições climatéricas totalmente diferentes, pois a Humpata constituía um micro-clima irrepetível em qualquer outro ponto de Angola. Aliás Angola era rica em micro-climas.
Tinha o Dr. Abel Pratas construído naquela Serra umas instalações que eram o seu enlevo. Além das infra-estruturas inerentes à criação e estudo de gado bovino, erguera também uma bela Casa, praticamente um Palácio, muito bem situado em termos paisagísticos, com um grande tanque de lavoura que, ficando junto à casa, bem poderia servir de piscina para quem fosse capaz de aguentar a temperatura da água. . .a 1700 metros de altitude, no paralelo 15 abaixo do Equador.


Estava na altura iniciando as filmagens de um Documentário sobre Pecuária, quando o Dr. Pratas iria fazer uma viagem de inspecção à Humpata, onde nessa altura era Director outro Veterinário, o Dr. Champallimeau. Do ramo pobre, é claro. Muito simpático e atento observador dos ditames do "Todo Poderoso".. Resolveu o Dr. Abel Pratas levar-me consigo de forma a dar orientação quanto aos aspectos mais relevantes a filmar. Logo na primeira manhã fez questão de passear pelo jardim, alias muito bonito, dando instruções ao seu Colega sobre as espécies de flores que no seu entender eram mais próprias para cada canteiro, cada zona de sombra ou de Sol. Devo dizer que o Dr.Pratas era uma pessoa bem educada e sempre me tratou amigavelmente. Só não lhe perdoo o nunca acertar com o meu nome, chamando-me sempre António Silva ou, ainda pior António Sousa, isso sim, realmente ofensivo por razões que me dispenso de relatar.. Não sei se era por dar pouca atenção às opiniões alheias ou talvez houvesse ali o hábito de utilizar "em proveito próprio" as sugestões dos seus subordinados. Vou falar de um pormenor que não passando disso mesmo, de um pormenor, ajuda ao retracto do Senhor Director. Regressávamos num fim de dia dos trabalhos, e passando por uma baixa com uma pastagem muito bonita, limitada por um renque de chorões e onde na altura pastava uma manada de vacas "Frizeland" pretas e brancas, mas que aquela hora tardia, já não era possível filmar. Sugeri que no outro dia logo de manhã, quando a luz oferecesse melhores condições se filmasse um ou mais planos da varanda da casa de onde se desfrutava um panorama magnífico. Na manhã seguinte levantei-me muito cedo para pedir ao Dr. Champallimaux que mandasse colocar as vacas naquele pasto. Qual não é o meu espanto quando vejo o Dr. Pratas já na sala, e encaminhando-se para a varanda, diz: "Óh António Silva, estou a ver um sítio muito bonito para se filmar daqui, com umas vacas a pastar lá em baixo. Não lhe parece ? " Claro que me parecia,. . .já desde a véspera. Mas encaixei, e fiz o plano que ele tinha descoberto, , , naquela manhã.
Este tipo de relacionamento entre "figuras consagradas e influentes" e os restantes mortais, era uma marca da época, daquela "África que já o não era".. Assim, o Comandante Venâncio permitia-se ser contra o Governo de Salazar. Não sei até que ponto seria genuína esta posição, mas dava-lhe uma certa auréola de homem independente e corajoso. Mas a verdade é que se atravessava um tempo de facilidades, e de ausência de burocracias e receios que não podiam deixar de agradar a quem vinha de uma Lisboa de complicações e receios de tomar iniciativas que fossem contra o marasmo e que pudessem beliscar os interesses instalados. Das coisas que mais me impressionaram foram as facilidades concedidas para a execução dos meus trabalhos de Cinema Por exemplo: para as deslocações através da imensa Angola, tinha todos os transportes assegurados. Seja através das Autoridades Administrativas que no interior detinham praticamente todos os poderes de decisão. Seja nos Transportes Aéreos, aos quais tinha acesso mediante um curioso Livre Trânsito passado pela Direcção dos Serviços de Portos, Caminhos de Ferro e Transportes, ( de todo o género) Chegava a ser caricata a forma de que se revestiam essas facilidades. O Livre trânsito, assinado pelo Director, Engenheiro Kopke foi-me entregue, para exibir em qualquer Delegação da D.T.A. ou mesmo junto dos Comandantes dos Aviões em qualquer ponto do território onde houvesse apenas uma simples pista de aterragem. Esse L.T. estava passado sobre uma simples Senha de Expedição de Bagagem dos Caminhos de Ferro, e da qual constava que, "fulano, tem direito a passagem, prioritária em qualquer percurso" das Linhas Aéreas, ainda integradas nos Serviços de Transportes, mais tarde tornadas autónomas, com a sigla DTA. Mas de facto, só naquela África (que já o não era) podia ter crédito junto da Aviação Comercial um papelinho de má qualidade e pior impressão e mais pequeno que um postal. Foi precisamente com um destes “papelinhos” que embarquei em Luanda num D.C.3 rumo a Nova Lisboa. Aí embarquei num segundo avião. Este era um "Dragon-Rapid", bi-motor, bi-plano para oito passageiros. Curiosamente fora com estes aviões que a TAP iniciara as carreiras regulares Lisboa-Porto., aí pelas décadas 30/40, e foi também com eles que se iniciaram os Cursos de Paraquedismo Civil em Luanda nos anos sessenta.. A carreira deste pequeno avião não era ,pelo contrário, nada pequena. Partindo de Nova Lisboa, escalava Quipungo, Caconda, Sá da Bandeira, Moçâmedes, Porto Alexandre e Baía dos Tigres, cerca de 900 quilómetros. A propósito: à entrada da Baía, que se desenvolve no sentido Norte/Sul, por 37 quilómetros da Barra, ao Saco já perto da margem direita do Cunene e quase junto à Foz. Esta é, segundo julgo saber, a segunda mais extensa do Mundo. A primeira será a de Hudson nos E.U. Na Povoação situada na Restinga, grande areal ao nível do Mar, funcionam, as Pescarias e Fábricas de Farinha e Óleo de Peixe. Todas as construções são em "palafita" por causa dos ventos fortes (garoas?) que levantam grandes nuvens de poeira e acabariam por cobrir as edificações, todas elas de um só piso. . Também a garoa é responsável pelo reduzido tempo de vida das viaturas. Constava que o record de tempo antes de gripar pertencia a uma carrinha que durara OITO meses. A Costa, em frente é bem mais alta, formada por uma duna de areia muito branca listrada de areia negra por uma considerável extensão. Teria este "tigrado" dado origem ao nome da Baía ? Assim o ouvi, assim o passo adiante. . A aterragem na Baía dos Tigres, e a consequente descolagem, revestiam-se de um "dramatismo" à beira do caricato. Da borda do Mar partia um caminho em lajes com pouco mais de dois metros de largo e cerca de duzentos de extensão que termina justamente no Adro da Igreja. É a Pista de aterragem!. Eu diria: "Aterradora" Foi a primeira vez que vi uma sólida Igreja de pedra a encaminhar-se velozmente para o nariz do "meu" Avião, até se imobilizar: ela e o meu Coração, junto do Adro.. Ninguém me avisara disto! . Mas tudo correu bem daquela vez e em todas as outras das várias em que ali aterrei. Agora o caricato: parado o avião, dois homens pegaram na cauda, rodaram-na 180º e levaram o aparelho de volta ao início da Pista.. À descolagem voltámosa ver a Igreja a vir ao nosso encontro até desaparecer debaixo do trem de aterragem.
Permito-me voltar a Nova Lisboa para descrever a tripulação desta carreira semanal. O Piloto era o Alves, figura muito conhecida em todo o Sul de Angola. Era natural de Nova Lisboa onde tinha uma "chitaca" que cultivava entre uma viagem e outra. Era de estatura elevada para tão pequena aeronave. Antes de entrar no avião tinha de tirar o boné do fardamento e mesmo assim roçava com o alto da cabeça no tecto do aparelho. Gostava de fazer uma experiência para distrair os passageiros da monotonia da viagem. Deitava o braço fora da janela, e a corneta de aviso de perda de sustentação não se calava enquanto não recolhesse o braço. O Rádio Telegrafista era o Arroube, que também estava adstrito àquelas carreiras do Sul. Faziam uma bela equipa. Nesta minha primeira viagem naquele percurso, o que me interessava era sobrevoar a Foz do Cunene, onde se estava a construir uma Estação de Captação de Água do Rio para abastecimento da Vila,
através de uma conduta de trinta e sete quilómetros. Até àquela data a provisão de água era feita por um navio tanque vindo periodicamente de Moçâmedes. Justamente naquela altura o Mar tinha rompido a barreira natural de areia que o separava do Saco da Baía. Tínhamos trazido de Moçâmedes o Engº responsável pela Obra que fez connosco a viajem até à Foz. Mas, qualquer coisa se bizarro se passou, Avistáramos dois "guelengues", magníficos antílopes de grande porte, correndo pelas dunas. O Alves era um caçarreta compulsivo e, por coincidência levávamos a bordo duas carabinas destinadas à equipe de construçãoque vivia num acampamento junto à margem do Rio, e assim poderia abastecer-se de carne de caça. O Alves não hesitou, deu ordem ao Arroube para informar Moçâmedes de que iriamos aterrar na Praia junto da Foz do Cunene. Assim se fez e a comunicação foi mantida até que o avião parasse os motores e o Radio- telegrafista desse o serviço por terminado. Desta forma em Moçâmedes saberiam que tudo tinha corrido bem. ( um à parte: naquela "África que já o não era" ainda se aterrava o Avião da Carreira Comercial numa praia deserta, a um milhar de quilómetros da Base, só para ir à caça! ) E lá saímos todos em perseguição dos Guelengues, com o Alves a correr desenfreadamente à nossa frente de arma em punho. Mas os antílopes que estavam dispensados de formalidades de fronteira, lançaram-se ao Rio e passaram para o lado da África do Sul. (ainda não se chamava Namíbia) Foi uma grande desilusão para o Alves e para os trabalhadores da Captação. Mas era já muito tarde para voltar para trás a tempo de aterrar sequer na Baía ainda com luz de dia. Foi necessário voltar ao avião, pôr os motores a trabalhar, estender a antena pelo chão e comunicar a Moçâmedes que ficaríamos ali até ao dia seguinte. Assim, não pude fazer o meu trabalho. Fomos dormir e jantar (carne seca que estava uma delícia, pelo menos até ao dia seguinte quando vi carne a secar ao Sol. Dormimos debaixo de um toldo de Camião que estava apeado. Frio: o do Deserto, quase à beira de um grande rio, a poucas centenas de metros do Mar... no Paralelo 17. No dia seguinte retomamos a viagem para Norte: Baía dos Tigres, Aqui o Administrador Lúcio ofereceu-nos VINTE PESCADAS – 20.. parece estranho tanto peixe, mas nem tanto assim. A pescada daquela latitude é a única em todo o litoral de Angola. Para Norte de Porto Alexandre as águas começam a ser menos frias e a pescada já se não dá. Mas esta da Baía é de excelente qualidade mas... é fraca para obter óleo ou mesmo farinha. Isto é, não tem valor para as l. Fábricas locais.. Na viagem de regresso a caminho de Nova Lisboa, voltamos a aterrar em Quipungo. Como ainda era costume naquela "África"... a pista encheu-se de gente vinda das libatas das redondezas, principalmente crianças que, e ainda durante bastantes anos, não se cansavam de olhar com admiração e algum temor para aqueles estranhos pássaros com brancos dentro. Mas tive ali a grata surpresa do encontro com um Amigo: o Dr. Gardete, veterinário que
ali estava colocado há já algum tempo. Foi então que me lembrei de que parte do pescado me pertencia, e ofereci-o ao meu Amigo que o recebeu, literalmente, como uma Maná do Céu. O que ainda me restou ficou para o Alves e o Arroube, visto que o não poderia levar para Luanda.
Na carreira seguinte, uma semana depois, tornei a fazer tudo de novo, desta vez com êxito. Na Baía repetiu-se o brinde das pescadas. Quando aterramos em Quipungo já lá estava o Dr. Gardete, desta vez munido de uma cesta de razoáveis dimensões. Perguntei: " como é que soube?" - "Cheirou-me a peixe; por alguma razão sou veterinário!"
Ainda hoje tenho saudades daquela "África que já o não era," da Angola que foi a "Minha Terra" durante os melhores 29 anos, 8 meses e 10 dias da minha Vida.

3 Comments:

Blogger Okawa Ryuko said...

John! Será que não é o João Silva, cameraman, que foi meu aluno de inglês nos anos 90? Do you remember me? Sou a Cláudia. Estava à procura da palavra "Lubango" nos blogs e topei com o seu. Bem escrito, divertido, interessante! PARABÉNS! Gostei muito de ler estas histórias de Angola do "antigamente na vida". Ainda agora regressei do Lubango. Estive por lá quase 4 anos (lembra-se que eu nasci lá?). Também tenho um blog: demandadodragao.blogspot.com. Há um post intitulado "Malhas que o Império tece" relacionado com Angola. Um grande abraço! Só espero que seja mesmo o John!Mas quem mais poderia ser?!

10:29 da manhã  
Blogger Okawa Ryuko said...

Hi John! Thanks for your kind words. pois é, o seu blog é do melhor que se vê por esta blogosfera portuguesa. No comentário anterior,já resumi a minha opinião. Bem escrito - como já não se vê!- Divertido, porque trai o sentido de humor que lhe conheço e muito interessante: os seus relatos são extremamente ilustrativos da vida daquela época e daquele local. Obrigada por os partilhar connosco! Lembro-me de outras histórias que contou, como a de uma dama chamada Cora Pena (a minha mãe conheceu-a) e a "história" da descoberta do caminho marítimo para a Índia que o obrigavamos a repetir vezes sem conta porque era de morrer a rir!Keep on the good work! Vou ser visita assídua do seu blog!

10:12 da manhã  
Blogger Luisinho said...

Meu Caro Amigo

as suas histórias do antigamente fazem certamente recordar. Fala de gente de outros tempos, com outros sonhos e outra maneira de ser, e sobretudo com outras referências. Bem diferente da que hoje existe por Portugal fora, sem ideiais, sem sonhos ou projectos, pela simples razão que lhos cortaram à partida e possivelmente de vez. A abrilada poderia ter criado uma outra era de relações entre as pessoas, mas aqueles capitães (por sinal entre os mais limitados e mais boçais do exército) apenas pensaram em si e na satisfação das suas exigências salariais (como agora o rapaz Otelo reconheceu) e a esquerda civil maçónica e "mal-pensante" apenas queria entregar o Ultramar a quem quer que fosse. O que deixaram atrás de si está à vista mas ainda por contabilizar: - guerras, miséria e morte, na Guiné, em Angola, Moçambique e até no pacato Timor. Esta é a herança da abrilada, feita de abandono, de irresponsabilidade e de crime.
Tem nos seus escritos sobre o Dr. Abel Pratas, que foi amigo do meu Pai e colega de serviço do meu padrinho (o engº Heitor Mirrado), algumas imprecisões, que tomo a ousadia de corrigir: - a Humpata não fica a 1700 m, fica bem acima dos 2000, e na zona da Zootécnica bem perto dos 2100. Depois o que o Dr. Abel Pratas pretendia, e fez, não era estudar gado bovino, mas sim, gados ovino e caprino, para a produção de leite e de lãs. Os bois apareceram, depois, porque havia ali espécies gentílicas que apresentavam um potencial interessante para a produção de leite e por aqui, com as misturas, a produçãpo de queijo. De resto, os micro-climas que refere não são tão distintos assim da zona do Planalto Central, pois no Luimbale há cotas mais altas (o Môco vai a 2620m) e no Huambo as altitudes andam pelos 1750 m. O que foi ali feito foi pioneiro para a época e ainda continua a ser um marco na investigação em Angola.
Só mais um pequeno pormenor, quando se vinha de Nova Lisboa, primeiro aterrava-se em Caconda, só depois é que se avançava para o Quipungo....
Fico por aqui, já chega de picuinhices da minha parte.
Lalipô tchíua, à moda Umbundo.

10:43 da manhã  

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