terça-feira, junho 05, 2007

A “LIBERDADE MALUCA”

Nos anos trinta,era uma figura muito popular ali pela Rua dos Remédios e Largo de Dº Rosa. Morava numa sobreloja à esquina do Largo para o qual abria uma janela. Do lado da Rua dos Remédios, além da entrada,havia uma pequena varanda, palco por excelência das performances em que a Liberdade era pródiga,para gáudio do rapazio primeiro e dos adultos depois.
Desaparecia de tempos a tempos, - toda a gente sabia porquê – mas não a desprezavam por isso; deixavam-na viver a sua vida …desde que não “desinquietasse” os seus homens.
Algumas vezes arranjava um apoio mais duradoiro que a vinha buscar e trazer a casa, até que se interrompesse o ciclo, e tudo se repetisse com outros apoios.
E lá ía vivendo aos altos e baixos como é sina da Liberdade.
Geralmente quando voltava de uma tournée, vinha muito bem calçada e vestida com certa elegância e qualidade. Mas tudo tem o seu fim e o "prego" era ali mesmo ao lado. E lá voltava outra época de tournée.
O pior era quando havia drama passional, traição, ciúmes. Era aí que surgiam as performances a que já me referi.
Vinha para a janela, rasgava-se despenteava os cabelos, rasgava a roupa, gritava. Sobretudo gritava aos quatro ventos os feitos e defeitos do seu "último".
Eram sempre espectáculos com muito público.
Em boa verdade ela não era um caso único; noutros recessos mais afastados do Bairro outras "Liberdades" haveria, embora nenhuma delas fosse a que
se desejava.
Nos Bairros pobres, perdão; Populares. Naquele tempo não se usava aquela designação. E com certa razão, diga-se, porque só lá vivia (sobrevivia) Gente do Povo, que tinha uma forma compreensiva de encarar a pequena delinquência: pequenos furtos, contrabando, etc. em que os fragateiros do Tejo eram exímios. Havia mesmo um princípio sagrado entre eles: “nenhuma carga passava pela sua fragata sem pagar a taleiga". Mesmo quando carregavam pedra, areia ou coisa do género, sempre deitavam umas pasadas ao rio, por uma questão de justiça e igualdade: "ninguém em circunstâncias iguais deverá ser privilegiado".
Havia alguns "intrujas" (receptadores) na vizinhança, e o mais conhecido era o Diamantino da Mercearia, no Largo dos Caminhos-de-Ferro a dois passos da Esquadra da Polícia instalada a menos de quarenta metros e…no mesmo passeio. Este personagem tinha o sistema muito bem montado. O balcão da loja tinha uma prateleira muito baixa. Os fragateiros escondiam a taleiga da seguinte forma: estendiam um lenço muito grande que todos eles usavam, sobre o leito da fragata; espalhavam sobre ele por exemplo, latas de conserva. Depois deitavam-se de costas sobre a "mercadoria" que era disfarçada pela estreiteza da cintura e amarravam as quatro pontas do enorme lenço sobre o peito, vestiam a camisa de xadrez e punham o casaco pelas costas como era seu hábito. Claro que isto dava para pouca quantidade de latas, mas estamos falando de pequenos delitos, e os fragateiros - eram gente honesta - considerada entre a população. . Chegados à loja do Diamantino (por nós, garotos, crismado de "rouba tostões") o fragateiro colocava as latas sobre o balcão enquanto o marçano devidamente industriado vigiava a rua. Subitamente o rapaz dá o alarme: "Vem lá um polícia!!!". Acto contínuo, o "merceeiro intruja" puxa para dentro e para o chão toda a taleiga. A pontapé lança tudo para debaixo da prateleira estreita sob o balcão. Mas afinal fora falso o alarme, e o presumível polícia seguira noutra direcção.
Quando a mercadoria voltava ao balcão, vinha reduzida a metade...
O pobre fragateiro sentindo-se roubado, reclama, mas o intruja mostra-lhe o chão virgem de sardinhas; e de atum nem o cheiro.Se o pobre marítimo reclama demais, ameaça-o com a polícia: diz-lhe que ele lhe veio oferecer mercadoria roubada. O que, sem deixar de ser verdade, se torna porém, numa coisa quase desculpável, face à "Diamantina" canalhice do Intruja.
A compreensão que os habitantes do Bairro demonstravam para com estes modesto pecadores, era extensiva a outra espécie de pecadores.
Mas agora me dou conta de como o ondular da memória me afastou da Liberdade, - mas não devemos esquecer que naquele pequeno Mundo, o fragateiro e a rapariga não passavam de dois pobres seres que – embora por prcessos diferentes, procuravam melhorar as suas vidas. Daí que tenham surgido entrelaçados nesta estória.
Naqueles recuados tempos havia muitas desordens por aquele Bairro - e pelos outros também. Umas benignas, que acabavam num copo na mesma taberna onde tinham nascido, outras nem tanto Algumas metiam mesmo navalhada, e então formava-se um ruidoso cortejo de garotada e mulherio em altos gritos e choros, pela Rua do Paraíso acima até ao Hospital da Marinhao ferido levando o ferido em charola, fosse qual fosse a gravidade das lesões. Porque naqueles tempos de Paz e Concórdia; prosperidade mesmo, não havia "inemes", e os Bombeiros também não tinham grandes meios (só boa-vontade)
Entretanto os homens procuravam esconder o faquista. Afinal de contas, "um já está lixado portanto: vamos salvar o outro, porque isto até odia ter
sido ao contrário" Esta a filosofia.
Mais uma vez me meti por caminhos ínvios e perdi a Liberdade.
Deixei-a lá para trás rasgndo-se, eagatanhando-se e gritando, em bebnefício da miudagem e, porque não dizê-lo, de algumas mulheres, já habituadas
àquela inconsequente histeria.
O último brado lançado da varanda sobre os espectdores era: "VOU-ME MATAR !". Saia e começava a descer a Rua dos Remédios, a caminho do Chafariz de Dentro seguida por num cortejo com o rapazio gritando: "A Liberdade vai-se ;Matar! A Liberdade vai-se matar!!"
Aquele percurso levava-a, e à sua Corte,directamente à Doca do Jardim do Tabaco que, com a sua vizinha do Cais da Areia, (também chamada Doca do Esanhol) acolhia a maior parte das fragatas de Lisbo. Lindíssimas embarcaçõe, de "boca aberta" o que lhes dava uma grande capacidde de carga,ssim como facilidde de estiva. Algumas, as maiores julgo, atingiam oa vinte metros de proa à ré. Devido à sua forma bojuda e por serem construidas totalmente em madeira, tinham grande flutuabilidade. Com bom tempo, chegavam a navegar com água pela borda falsa, isto é, quase pela borda propriamente dita.
No topo do Mastro, o "calcês" exibiam com orgulho as listas de cores variadas e sempre berrantes,de forma a serem facilmente identificadas, pois as lists, as cores e a sua disposição eram o Bilhete de Identidade do proprietário.
E pronto. Tornei a perder a Liberdade. Mas está mesmo aqui na "Doca
do Jardim" como é comunmente chamada, por todos nós,os do Bairro, que lá íamos tomar banho, quando onseguiamos iludir a Guarda Fiscal, em cujo Posto havia uma planta de tabaco, sempre viçosa de forma a identificar as folhas que os contrabandistas procurassem fazer entrar no País.
Finalmente atingimos o Cenário escolhido pela Liberdade para a sua Apoteose.
Chegava acompanhada dos berros da garotada fazendo contraponto ao seu: "VOU-ME MATAR !" "VOU-ME MATAR!!!"
Os fragateiros acumulavam-se nas suas embarcações, esperando o Grande Final. Quando a "casa" estava bem cheia, a Liberdade mergulhava nas águas da Doca que, naquele tempo - à oitenta anos - era bastante limpa,e só não se bebia porque era salgada.
Como todos esperavam - e ela tmbém - os homens lançavam-se à água e
salvaram a Liberdade. Com certeza davam-lhe algo quente a beber, enquanto o público desinteressado, e cruel ía destroçando. Cobriam com uma manta o corpo encharcado daquela infeliz criatura, Ajudavam-na a subir a muralha.
E a Liberdade, tomava o caminho de casa.
Encharcada. Chorosa. Sosinha.
E


















4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Cada vez melhor!

8:42 da manhã  
Blogger António Melenas said...

Deliciosa esta sua crónica e outras que li por aí abaixo.
Chegeuei aqui recomendado pelo seu amigo Jorge Santos e gostei
Um abraço

2:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

amigo joao, só hoje vim ao blog após as minhas férias. Vou ler as cronicas que estão para a frente. Este António Melenas é meu primo e viveu muitos anos em Moscavide. Creio que lhe falei nele e nos seus fabulosos blogs. O Escritos Outonais e o "Enquanto e Não". O meu amigo vai gostar de ler. Um abraço e até à próxima encadernação

9:44 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Amigos Aaterísco e Melenas. Obrigado pelos elogios, pois que de elogios se trata que, mesmo imerecidos são agradáveis de ouvir, (ler). Mas não me desagraria - assim penso - receber algumas críticas, que seriam (serão) como a pimenta na salada. Entretanto, ficrei feliz se receber o endereço do Amigo Melenas para poder ler as suas crónicas. Um abraço para cada um, pois o Asterísco é tão grande que absorveria um abraço sózinho.
João

6:44 da tarde  

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