sexta-feira, maio 11, 2007

conto sem título

... conto, porque só o é se for contado; sem títuloporque muitos anos correram sem encontrar um apropriado, e antes de ter coragem (insensibilidade?) para o escrever. Porque a Dor dos outros, dos Amigos, é para se guardar no coração e procurar mitigá-la com carinho, quando mais se não puder fazer.
Acabara de regressar de uma estadia de dois anos nos Açores, num “Condomínio Fechado”.
Da alegria dos meus Pais não cabe falar, porque foi a que seria de esperar.
. Procurei Amigos que, apesar de receosos,me receberam muito bem, e outros “amigos” que já nem de mim se lembravam - ou procuravam esquecer.
Minha Mãe convenceu-me a ir – um tanto a contra gosto - ao Hospital dos Capuchos visitar a Maria Eva, uma moça de 18 anos, a mesma idade e o mesmo irremediável mal de minha irmã.
Argumentava a minha Mãe que eu tinha andado com Maria Eva e a irmã Beatriz ao colo quando a família morava em parte da nossa casa. Dizia-me que a mãe sempre perguntava por mim nas inúmeras vezes em que, juntas, trilhavam aquele caminho de lágrimas. Seria crueldade não aceder ao desejo de minha mãe, e lá fui, embora constrangido, como sempre me sinto quando num hospital, exibo a arrogância da minha saúde, procurando insuflar no doente uma esperança de melhoras em que eu próprio não acredito. E era aquele o caso.
Ali encontrei junto da Maria Eva, a Dª Hermínia e a filha Beatriz quatro ou cinco anos mais nova que eu, e que não voltara a ver desde os seus cinco ou seis, e que agora camuflava, com a pujança de uma mulher feita, a verdade dos quinze que teria. Junto da cama da Maria Eva parecia tornar a irmã, ainda mais frágil e doente.
Triste e abatida, mas disfarçando estes sentimentos com um ar e uma voz serenos, a Dª Hermínia, procurava sustentar com a filha uma conversa ligeira e simples que afastasse a possibilidade de qualquer referência à doença que,inexorável, a minava.
Espantosa esta Senhora que eu deixara de ver pelos meus onze doze anos, e de quem recebera todo o carinho, na estreita convivência da mesma casa.
Era Professora Primária, mas reformara-se cedo devido a uma escoliose que se foi acentuando gravemente. Sempre me impressionara o trabalho que ela fazia naquela casa onde vivia com uma irmã mais nova, que devia ter um problema mental e pouco ajudava na lida. O marido era um velho sargento reformado que, fiel aos costumes da época, não mexia uma palha. As filhas, eram muito garotas e só davam trabalho. Não quero mentir mas julgo que ela mesma leccionava as filhas. Além disso, costurava, adaptava a roupa da mais velha para a mais nova, virava colarinhos, remendava a roupa etc. Aliás isto era corrente nas casas pobres, como eram todas as daquele Bairro. Mas à Dª Hermínia, acrescia aquela deformação incapacitante. Não se lhe ouvia um queixume, uma palavra mais ríspida. Comigo, que era uma criança tinha um carinho de mãe.
Depois de tantos anos, voltava agora a vê-la mais deformada, mas com a mesma disposição de ajudar e dar amizade aos que a rodeavam. Tratou-me com o mesmo carinho de antigamente. E eu comovi-me, e procurei responder com igual sentimento, mas com a dificuldade de o expressar com receio de parecer criança, aos vinte anos. .
A Dª Hermínia convidou-me para jantar em sua casa. Com alguma timidez mas, devo confessar, com a vontade de rever a Beatriz, aceitei o convite.
No dia marcado lá fui. Era uma casa de um só piso, que como janela tinha um postigo aberto na porta. Havia muitas assim nos Bairros pobre, e aquela era uma dessas na Rua da Penha de França, Perto do Largo de Sapadores. Quando, anos mais tarde, passei casualmente por al. A casa fora demolida, deixando no muro a que vivera encostada anos sem fim, o contorno da estreita construção.. Hoje, no local, existe um prédio de vários pisos.
Mas voltemos à narrativa que me propus. Como atrás disse, apresentei-me no dia e hora marcados, Com a Dª Hermínia, que entretanto enviuvara, estavam a irmã. e a Beatriz .
Sentámo-nos em amena conversa enquanto se concluía o jantar que tinha de ser aprontado na ocasião. A Dª Hermínia quis saber tudo acerca da minha permanência no tal “Condomínio Fechado” onde me deram hospedagem, onde fiz dezoito anos e me mantive (mantiveram) até aos vinte. Procurei amenizar a narrativa, contando que comigo havia mais quarenta hóspedes, infelizmente todos homens.. Noutro “ressort”.havia mais cerca de duzentos que não tivera ocasião de conhecer.. Curiosamente não só não me debitaram a estadia, como me forneceram cama, comida e roupa mais ou menos lavada.
Enfim, procurei manter a boa disposição de todos, principalmente da Dª Hermínia. que soube muito bem captar a ideia de que aquilo não teria sido bem assim.
Finalmente veio o jantar,. Uma magnífica e fumegante cabeça de pescada acompanhada de batatas e grelos. Posta na mesa, que não era grande, a travessa do peixe ocupava uma boa parte deixando pouco .mais que o espaço para os quatro pratos e talheres, e um candeeiro de petróleo com o vidro partido e um pedaço de jornal colado no seu lugar. Nada que eu não tivesse já visto em casa de meus pais. O vidro estava já um pouco mascarrado, o que lhe retirava alguma intensidade luminosa., mas não se lhe podia mexer. sem correr o risco de acabar de parti-lo. Estrategicamente instalado sobre o fundo de um tacho virado, passou a cumprir razoavelmente a sua função..
Com o apetite aguçado pela espera, íamos finalmente começar a jantar. Subitamente, na pior altura, alguém bateu à porta que era naquela mesma divisão. Levantou-se a Beatriz e foi abrir. Um golpe de vento vindo da rua atingiu o candeeiro. O vidro pulverizou-se literalmente espalhando uma chuva de pó de vidro sobre aquela cabeça de peixe que certamente custara muito mais do que poderiam gastar. De alguma coisa terão prescindido, talvez de outra refeição, para me oferecer aquele jantar de carinho e amizade.
Senti-me um miserável. Odiei-me, por não poder remediar aquele desastre da única forma que se impunha: levar aquela consternada família a um restaurante e oferecer-lhes o jantar.
Ninguém disse uma palavra. Nenhum de nós estava em condições de o fazer.
Levantámo-nos da mesa em silêncio, e em silêncio nos despedimos.
Com o coração num farrapo fui jantar a casa de meus pais. E elas?.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

conto muito bonito de grande sensibilidade e dor... que mais dizer de algo tão intimo e profundo? Talvez que gostaria da descrição à sua maneira dos dois anos de condomínio fechado...

11:40 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Olá Amigo Asterisco.
muito obrigado pelo seu comentário, e pela curiosidade em conhecer ( por fora, espero) OS Condomínios Fechados. Pois pode visitá-los em: Trafaria Prisão -
Prisão (1) - Prisão (2) Deportação,
Terá de deslocar-se até aos remotos anos de 2005/06.
Um abração-

1:11 da tarde  
Blogger Erecteu said...

Ah! Amigo João, o que para aqui nos dá vale ouro.
Um abraço.

7:07 da tarde  

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