MAS QUE PAÍS É eeeeste ?!!!
Sim, que País e este? Tremo de espanto e indignação com a notícia dada com relevo por toda a imprensa, de um pobre rato que “jazia morto e apodrecido” num gabinete de juiz no vetusto convento, ora tribunal da Boa Hora.Nestes tempos de lutas pelo ambiente, pela protecção das espécies, que feia contradição entre o que se alardeia e o que se faz realmente. As grossas paredes centenárias abrigaram, cuidaram e protegeram desde o Século, XVII os frades Agostinhos Descalços que arrastavam, sonolentos, as plantas dos pés pelas frias lajes dos claustros, sempre em completo silêncio, que a isso os obrigava o voto que haviam assumido com as vestes talares. Mas se o falar lhes era interdito, nada os impedia de ouvir, e ouviam saudosos o guinchar de centenas de ratos que lhes trazia à memória o chilrear da passarada nos hortos e vinhedos da sua longínqua infância. Assim conviviam, monges e ratos, todos criaturas de Deus, todos com o sagrado direito à vida; uma vida digna e conforme às necessidades das espécies no seu conjunto e do indivíduo como “ser único e insubstituível”. E os frades, no seu alheamento das coisas terrenas, num certo desmazelo, confessemos, iam deixando umas poucas migalhas da migalha que já eram as suas refeições na escudela do almoço para a ceia ou da ceia para o dia seguinte. Os ratos agradeciam. E no isolamento da sua cela, na dureza do seu catre, os frades iam escutando como num sonho o chilrear da passarada nos hortos e vinhedos da sua infância. E esta sã convivência perdurou através de Séculos, até que os monges se foram para junto de Deus, ou simplesmente extintos pela República. Mas os ratos não, ninguém se preocupou com eles que, com a vivência adquirida ao longo de milénios, foram sobrevivendo sem serem molestados pelas novas autoridades entretanto investidas. Mas os “tempos” evoluem – nem sempre no melhor sentido, diga-se – pois ainda há setenta e oitenta anos atrás, existiam nesta cidade de Lisboa, verdadeiros santuários das ratazanas. Refiro-me a certos Bairros a que se teimava em chamar Populares, eufemismo usado para “pobres” palavra “non grata” das autoridades da época (melhor dizendo. das épocas). As casas desses bairros de que Alfama era paradigma; eram antigas, envelhecidas não cuidadas. Chegavam ao extremo de uma cama de um primeiro andar, enfiar uma perna no soalho e romper o teto do vizinho. (observação directa). Havia buracos em tudo quanto era madeira - e era quase tudo – e os ratos circulavam directamente de divisão para divisão, de casa para casa, de prédio para prédio sem necessidade de vir à rua. Tinham o abastecimento garantido e simplificado porque, na ausência (total) de frigoríficos, os alimentos ficavam pouco menos que expostos como num “minimercado”. Era só servir-se. Tinham já uma tal intimidade com os outros ocupantes que sucediam casos como o que vou relatar (ainda por observação directa). Uma noite, vindo da escola, dispunha-me a comer o que minha Mãe me tinha deixado no borralho da chaminé, quando oiço um ligeiro restolhar debaixo da mesa. Fiquei de pé observando um ratinho muito pequeno arrastando um pedaço de pão quase do seu tamanho. Certamente deixado cair por um dos meus irmãozinhos. Fiquei quieto e o ratinho continuou no seu árduo labor, até que eu sussurrei um “Chiu”. O bichinho largou o pão, deu uns passinhos na minha direcção, levantou a cabeça, olhou-me, deu meia volta e pegou no pedaço de pão e enfiou-se com toda a tranquilidade num dos buracos no soalho que ficava ali mesmo à mão. Não sei se teria ido contar à família a sua façanha; mas se foi, bem lhe deve ter custado um bom puxão de orelhas. em querer, desviei-me do meu rumo inicial que apontava para “espanto e indignação”. Mas não perdi um, nem outra. A seu tempo lá voltarei. Por agora proponho que continuemos pelos idos dos anos vinte/trinta do Século XX. Nessa recuada era, a gente mais pobre entre os pobres que todos, então, éramos, procurava diversões ao alcance da sua bolça. E sempre encontrou: uma espécie de Circo Romano (versão reduzida) que de uma “só cajadada” matava três males: a penúria – mal crónico e generalizado - a falta de diversões, e finalmente, os ratos que comiam as sobras do jantar. Divulguemos pois o “modus faciendi”: usavam umas ratoeiras com lotação para três ou quatro exemplares, provida de um pedaço de queijo sobre um alçapão. Deixada de noite em sítio estratégico – que era qualquer sítio – de manhã era só contar as peças, anunciar o espectáculo em altos gritos e esperar que as janelas se enchessem de uma multidão ululante, ávida de luta, violência e vingança. Entretanto, chegavam os gatos, que não precisavam de convocatória. Abria-se o “curro” e aí tínhamos uma “corrida” de morte -lenta - pois os “matadores” não tinham pressa em acabar com as suas presas sem primeiro brincar um pouco. Isto era o corrente nestas lutas com final antecipado como a Luta Livre no Parque Mayer. Mas por vezes, poucas vezes, alterava-se a rotina e o final, como no seguinte episódio (também de testemunho presencial). Tinham caçado um ratinho adolescente numa ratoeira de pequenas dimensões. Iniciou-se a função com a presença de apenas um gato que estava, como habitualmente, com a disposição de se divertir antes de “se sentar à mesa”, tanto mais que não iria haver mais convivas. Aberta a porta, logo o prisioneiro, presumível condenado à morte, se esgueirou direito à valeta do passeio, seguido do seu, também presumível, carrasco. Tivemos então um espectáculo de rara inteligência e mais rara coragem. O roedor, sempre encostado à valeta e encarando a centímetros a porta do inferno que era a boca do gato, encrespava-se e avançava uns passinhos; e o gato, certamente lambendo por antecipação os beiços ia recuando na mesma medida, deixando à sua potencial refeição o comando das operações. E assim se passaram angustiados segundos até que, percorrido um longo, longo meio metro, o inteligente e corajoso ratinho se esgueirasse pelo cano do algeroz que atravessava o passeio. Nunca vi melhor nos filmes de desenhos animados; nem escutei uma tão grande ovação proporcionada por uma multidão de prováveis futuras vítimas daquele genial roedor. Chegou a altura de reatar a estória no ponto em que a deixei, à beira do “espanto e da indignação”. Sim, que por agora andei por tempos espaçados por quase um Século. Como foi possível que se tenha perdido o sentido de solidariedade, de amor ao próximo, mesmo tratando-se de um animal, também um ser de Deus, como nós próprios. Como foi possível esquecer uma tradição vinda do Século XVII, em que os Agostinhos Descalços repartiam as suas parcas migalhas com outros seres mais carentes igualmente feios, mal cheirosos e tão descalços como eles próprios, mas também como eles próprios, criaturas de Deus. Como foram capazes, os senhores juízes guardiães da Lei e da justiça, deixarem que a incúria, desleixo, desumanidade, levassem à morte, à putrefacção ao extermínio de toda uma estirpe vinda do Século XVII, coeva do nascimento do Mosteiro dos Padres Agostinhos Descalços. Então nesta época de progresso, de espectacular avanço da ciência, dos antibióticos, vacinas, quase milagrosas, etc. não foi possível salvar um pobre rato, talvez o último representante daquela família antiga de quatrocentos anos e que agora “Jaz Morto e Arrefece” num gabinete de um Meritíssimo Juiz do Tribunal da Boa Hora, em pleno centro da Cidade de Lisboa. Tremo, já não de espanto. De indignação.
“Mas que País é eeeeste»?!!!
“Mas que País é eeeeste»?!!!
2 Comments:
Escreve muitíssimo bem!
è deste humor, desta humanidade e sensibilidade que eu andava arredado...
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