segunda-feira, outubro 08, 2007

SUSTO A PRAZO



Em mil novecentos e trinta e oito ou trinta e nove, teve lugar em Lisboa o Congresso do Vinho e da Vinha com o apoio do Ministério da Agricultura.
A fim de promover no estrangeiro o interesse pelo evento, mandou aquele Ministério que se realizasse um documentário cinematográfico em 35m/m,( formato ,comercial)
Foi indicado para o realizar, o Escritor Adolfo Coelho, funcionário daquele ministério e especialista de pequenos filmes de bonecos animados (não desenhos) destinados chamar a atenção do público para coisas úteis, como higiene alimentar, cuidados a ter com a criação doméstica , etc.
Servia como guião a prosa que o apresentador deveria “debitar
durante as exibições do filme.
Adolfo Coelho chamou como habitualmente, o Operador Aquilino Mendes , de quem eu era assistente.
Eu adorava os Documentários que o sr Adolfo Coelho realizava . para o seu ministério.
O cenário era sempre o campo, as culturas e até a Saúde
Lembrei-me agora, de um cujo título era “Nasceu um Menino”
e procurava divulgar os cuidados a ter durante a gravidez ,e o parto
De entre os planos mais delicados, destacava-se o do parto que filmamos na Maternidade Magalhães Coutinho.
Depois dos preparativos chegou a hora do nascimento e, como
é clássico, estando a câmara do lado da mãe, apareceu-nos o Bebé nas mãos da médica. Depois filmámos com pormenor todos os actos que se seguiram, desde o corte do cordão até ao enfaixar. E a entrega do filho à mãe.
Nada de chocante, antes de ternura, e que não se tivesse visto
antes.
Este filme passou a ser um dos complementos do programa de
“Fátima, Terra de Fé” de Brun do Canto, estreado em 1940 ou quarenta e um.
O Produtor, César de Sá, deu-me a incumbência de fiscalizar
o filme em todos os cinemas onde se exibisse.
Foi em Santarém que tive ocasião de presenciar a cena mais
caricata, mais retrógrada e mais hipócrita que poderia ter imaginado.
Uma tarde, entrou no cinema um grupo de alunas do colégio das freiras.
Eram raparigas adolescentes e vinham acompanhadas (guardadas) por duas freiras. Nada de estranhar.
Começou o espectáculo pelos complementos como era uso na época;, uso que se perdeu e foi substituído pela mastigação das pipocas..
Projectou-se primeiro um filme de desenhos animados, a seguiro Jornal de Actualidades, com as incontornáveis cenas de guerra.
Depois, antecedendo imediatamente o intervalo, projectou-se o documentário “Nasceu um Menino”
E o menino nasceu realmente mas as moças, muitas das quais
em idade de ser mães, não o viram..
Foram retiradas da sala para os corredores enquanto uma das guardiãs ficava a espreitar por detrás das cortinas, que o filme acabasse e as raparigas pudessem entrar para ver a publicidade, enquanto esperavam pela “Terra de Fé” e pelo “milagre” feito por nós no antigo campo de futebol do ;Lumiar.
Voltando ao prosaico mundo das realidades e aos documentários
de Adolfo Coelho, quero realçar que muito nos aprazia, ao Aquilino e a mim colaborar neles não sõ pelos cenários “ecológicos”,(palavra jamais ouvida naqueles tempos) em que se desenrolavam, como também pelos assuntos tratados: “Campanha da Pêra” (Lourinhã). Adubação do meloal” (Ribatejo) “Tratamento da Vinha, (?) etc.
Ou o estudo da malária pelo Instituto de Malariologia em Alcácer do Sal ( este por si só daria um relato detalhado ).
Já vai longa a listagem e ainda não disse o que mais nos agradava naquelas filmagens: os “planos de trabalho”, ou mais precisamente,
“plano para um dia“ Eu explico: o realizador era uma pessoa com uma deficiência numa das pernas o que lhe dificultava o andar, sobretudo nos campos de cultura. Acresce a isso o seu peso:,180 quilos, o que não o impedia de ser uma pessoa bem disposta com grande senso de humor e um dos três mais brilhantes conversadores que conheci: Leitão de Barros, Vasco Santana e ele próprio.,
A juntar a todos estes predicados, havia um que, - não direi
que se sobrepunha aos outros, - mas tinha reflexos mais directos
na nossa boa disposição para cumprir com rigor, e até com prazer o Plano de Trabalho de cada dia.
O nosso Realizador, era um insuperável “Gourmè”-
Logo de manhã encaixados no Fiat Balila de serviço, conduzido pelo motorista Moreira tendo o Realizador, metade no banco a seu lado e outra metade no seu próprio assento. No banco de trás, nós dois poderíamos ir bem à vontade não fora a mala da máquina, a bateria, a malinha das “manigâncias”
“plano de A caminho do .local de filmagem passávamos por um
Restaurante previamente referenciado por Adolfo Coelho, e aí,era encomendado o almoço nunca para antes das duas da tarde, após o que dávamos início à execução do resto do plano de trabalho.
, Trabalhávamos com vontade, não só por sermos profissionais
sérios e competentes, mas incentivados pela ideia do almoço de que já sabíamos a ementa, que íamos prelibando à medida que nos íamos aproximando do fim do “Plano de Trabalho” coincidente com
o sentar à mesa, de onde nos levantávamos passado horas, para reentrar no Fiat Balila. E ainda mais apertados, regressar a casa.
Não se infira do exposto que éramos uns mandriões uns relapsos
A ideia, aliás, boa. era não cortar o ritmo de trabalho com, um almoço que sendo frugal não reporia as energias dispendidas; ou uma lauta refeição emoliente que leva tempo a repor a energia que só volta quando já são horas de acabar o dia de trabalho.
Assim fora em todos os anteriores trabalhos com Adolfo Coelho, e assim está sendo agora com este que referi lá muito para trás .
Na ocasião procurávamos ilustrar o seguinte período: do guião: “,,, …”utilizando os mais variados meios de transporte demandam Portugal. centenas de pessoas.”…
Assim começamos por filmar carros nas fronteiras e navios de turismo no porto de Lisboa. Havia uma Companhia inglesa, a Yonard Line que ostentando na chaminé as cores da bandeira espanhola como cor da empresa, demandavam todas as semanas, o Cais do Tabaco, Stª Apolónia , desembarcava um grupo de turistas e partia dois dias depois levando-os de novo.
Mas o que não levava eram os magníficos casacos, alguns de peles, que as senhoras envergavam à chegada.
Com a aviação foi mais complicado, ainda não havia carreiras Internacionais regulares. Na verdade nem para o Porto havia carreiras que devem ter sido inauguradas pouco tempo depois.
Valeu-nos a “ALITALIA” que vinha a Lisboa de vez em quando,e que apanhamos quase de embuscada-
Deixamos para o fim os Caminhos, de Ferro, por serem os mais fáceis. Estavam ali com hora marcada, quase em qualquer sítio
Escolhemos entre outros locais, uma recta que começava junto da Estação de Vila Franca e se estendia alguns quilómetros no sentido Lisboa.
A localização, era óptima; ficava ao lado do terreno da feira anual de V.Franca, que nesse tempo se realizava à beira da estrada que vinha de Lisboa .
Logo depois daquele terreno, corria a linha ´férria a um, nível
ligeiramente mais baixo
Depois era o rio para onde corriam as ´águas pluviais através de valas que passavam por baixo dos rails.
Informados da hora a que passaria ali o rápido do Porto, fomos esperá-lo a uma distância conveniente de forma a dar um plano comprido.
A composição passava a um nível mais baixo do que a barreira onde colocamos a câmara, para fazer um plano bastante bonito.
Mas eu, mito novo, já assistente a alguns anos, sonhava vir a ser operador, ficava radiante quando o Chefe me mandava fazer algum plano
sosinho...
Como ele não me deu a chance, fui eu que a provoquei, sugerindo que uma imagem colhida de dentro de uma das valas, portanto mais baixa do que o comboio iria valoriza-lo.
O Aquilino concordou e eu peguei num “kinamo” câmara de corda portátil meti-me na vala ficando com a cabeça ao nível dos rails. Isso levou o Aqulino a dizer-me: “encosta-te ao lado de cá, se não queres que o comboio te faça um galo na cabeça”
Achei o conselho judicioso e segui-o. Momentos depois surge o comboio, passando em grande velocidade pela Estação, apitando desesperadamente, e em segundos passou por nós.
Certo de ter obtido uma boa imagem, virei-me dando corda ao “Kinamo”, quando vejo outro comboio em sentido contrário e já muito perto de nós, também ele sem parar de apitar.
Instintivamente, cheguei-me para o lado da outra linha e filmei aquele inesperado brinde que nos apareceu.
No seu posto sobre o terreno mais alto, também o Aquilino tinha aproveitado o brinde.
Comentando a inesperada sorte que nos sorrira: o dobro da produção com o mesmo trabalho, encaminhámo-nos para um excelente ensopado de enguias que nos esperava num modesto restaurante meio escondido numa rua ao lado da Estação. Por onde passáramos de manhã, a assegurar as
enguias
E entre boas dentadas nas enguias, a conversa do Realizdor, e generosas libações, passou--se o resto da tarde.
De volta a Lisboa fui deixar o material no, Laboratório que ficava na Avenida da Liberdade, onde hoje ´é o Hotel Tivoli.
Já de noite a caminho de casa, subia a Calçada dos Cavaleiros, quando subitamente sou assaltado por uma sensação de frio na barriga, tremura, e tal fraqueza nas pernas que tive de me sentar no degrau duma porta.
E foi sentado e ainda trémulo, que o meu cérebro foi capaz de formular
a pergunta: “…e se o segundo comboio, que tanto apitava, viesse uns segundo adiantado ?
A conclusão que tirei é que não haveria pergunta por falta de cérebro que a formulasse., o “galo” de que falara o Aquilino, teria de facto acontecido.
Quando no dia seguinte contei o episódio da Calçada dos Cavaleiros,
ao Aquilino, ele ficou quase tão impressionado como eu ficara.

Mais tarde, em Angola tornei a ter sustos assim…mas não me assustei.