Corria a década de quarenta do Século XX e, como aliás na década de trinta, a produção cinematográfica em Portugal foi significativa, em termos de quantidade. Os trabalhos de filmagem de uma nova produção “quase sempre” se seguiam ao terminar da anterior. Como se calcula isto era motivo de satisfação para todos os profissionais. Ocasiões houve em que se trabalhava em dois filmes simultaneamente, um de dia (o que estava prestes a acabar) e outro de noite. Em Cinema ganhava-se muito bem – e gastava-se “melhor”. Por algum motivo escrevi mais acima “quase”. É que, por vezes, se esperava meses pelo filme que “vai começar já para o mês que vem”. Entretanto esgotara-se o que se havia ganho - e gasto - sem pensar nas
contingências da profissão.
Em todo o caso, no que ao Cinema respeita, estes foram “Bons Tempos” dentro dos terríveis tempos que ainda iríamos viver por mais trinta anos.
Estas duas décadas, de trinta e quarenta foram a primeira e a última em que trabalhei na Tobis e na Lisboa Filme, antes de rumar a Angola.
O Cinema português de então, se bem que incipiente e carente de meios técnicos, era vivido com paixão, e com imaginação que muitas vezes supria a falta de meios técnicos. Porque todos amávamos o nosso trabalho, melhor dito, a nossa actividade profissional variada de uns para outros.
Acabado o dia normal de trabalho às 18.00 horas, o que até por vezes acontecia, ia-se jantar a casa e voltava-se à Baixa para a boa conversa à mesa do Palladium. O Café consagrado pela gente de Cinema. Ali descontraíamo-nos até cerca da meia noite/1 hora.
Visto a esta distância - sessenta/ setenta anos -, isto parece impossível . Mas é exactamente a distância que dá veracidade ao que ficou dito. Primeiro, toda ou quase toda gente morava em Lisboa, depois o trânsito era reduzido (mas nós, logicamente não nos apercebíamos disso) e um eléctrico demorava vinte e cinco minutos do Lumiar aos Restauradores. Outro até Stª Apolónia – por exemplo -
pouco mais de dez minutos. Mais quinze para o regresso, e aqui temos que, mesmo gastando meia hora a jantar, era perfeitamente possível estar no Palladium às oito horas.
Em noite de estreia, acabada a sessão, ia-se para o Palladium recordar a fita e as reacções do Público. Fechado o Café, era a esquina do elevador da Glória que acolhia a nossa ansiedade enquanto esperávamos pelos jornais já com uma crítica, feita muitas vezes em cima do joelho.
Era nas tertúlias mais ou menos ruidosas, na varanda do Café, que se juntavam a nós pessoas que queriam saber como era “essa coisa do cinema por dentro.” Creio que por relações com alguém do “meio”, aparecia com alguma frequência o Professor Anselmo Vieira, que, curiosamente, tinha sido Professor na Escola
Ferreira Borges, no tempo – princípio do Século XX – em que meu Pai lá andou e falhou o Curso Comercial. Com êxito semelhante. Também eu por lá passei no fim dos anos vinte. Era, nessa altura, Director o Prof. Anselmo Vieira. Não quero que se tirem ilações erradas: Não pensem que se tratou de uma perseguição do Prof. Anselmo ao longo das gerações. Nem sequer nos conhecíamos.
Por esta altura, anos quarenta, era o Professor já muito entrado em anos. Pessoa bem educada, falava pouco, estava mais interessado em ouvir as nossas conversas meio loucas.
Ao tempo, as Mulheres não iam sozinhas aos Cafés, com excepção das de Cinema e de Teatro, e das coupletistas espanholas, sempre acompanhadas de uma respeitabilíssima “Madre”.
Entre os casais (poucos) de Cinema, um havia particularmente assíduo. Era o Produtor Carlos Arbués Moreira
Que trazia a Mulher praticamente “debaixo do braço” porque era muito pequenina. A Senhora era filha de Cândido de Figueiredo, autor do Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Quando o casal entrava sempre alguém dizia: “Lá vem o Arbués com o Dicionário de bolso”.
Entretanto iam-se desfiando as conversas entre os homens versando quase exclusivamente o Cinema. E a pobre senhora ia ficando um pouco abandonada até conseguir a atenção de uma “vítima” que, muito delicada e sofredora, ficava a saber a fundo como era a rendinha, o bordado a ponto de cruz ou um elaborado prato.
Pois naquela noite a “vítima” foi o Professor Anselmo Vieira, a disciplina culinária com um requintado prato de tomates. E senhora, com pedagógica minudência ia explicando: “ pega-se nos tomates; escaldam-se os tomates;” e o Prof. continuava a ouvir com uma expressão estranha. E a Senhora continuava: “pelam-se os tomates; tiram-se as grainhas aos tomates” e o Professor com expressão e voz dolorida: “Ai, Minha Senhora!”