Roxa xenaider

quinta-feira, agosto 31, 2006

OS RISCOS E...OS "XISTES"


Moçambique, 1951, quando se filmam motivos de caça, não no sentido de "caçar"” mas tão só de mostrar a vida animal – enquanto vida – podem surgir os mais inesperados incidentes, difíceis, perigosos, ou até engraçados. Vou tentar recordar alguns, se a tanto me ajudarem estas três da madrugada sem sono. Estávamos nos Tandos de Marromeu, na Zambézia sob protecção do inexcedível gentleman e caçador que era o Gustave Guê de que já falei noutro passo. Filmávamos búfalos em que aquela região era fértil. Tempo de cacimbo, as terras que o Zambeze inundara meses antes tinham enxugado quase completamente, dando ocasião a que se formasse uma gigantesca planície, (Tando). Rodando o olhar pelos 360% não se via o fim, o que quer dizer que nos encontrávamos no centro de um círculo de quarenta quilómetros de raio, para além do qual a curvatura da Terra não deixa ver mais. Como no Mar que, quando de bordo de um navio se avista na linha do horizonte outra embarcação, começa por se ver a mastreação e, pouco a pouco o casco vai emergindo até completar a imagem. Assimi estávamos nós, uma dezena de criaturas isoladas, como se estivéssemos noutro Planeta. Mas não. Estávamos protegidos por uma bem estruturada logística devida à competência do nosso Amigo Guê ganha ao longo dos seus mais de vinte anos de Moçambique. O nosso objectivo era filmar búfalos, como já disse. Bem avistávamos ao longe grandes manadas, e grandes, naqueles tempos, significavam milhares de animais. Para os alcançar, porém, tornava-se necessário atravessar algumas linhas de pântano, mais ou menos largas. Porém a Natureza de tudo cuida (ou quase), e fez brotar dessa lama os
"papiros" grandes hastes fibrosas e resistentes com um tufo de plumas no topo dos seus quase dois metros. Então, basta ir dobrando à nossa frente alguns papiros para obter uma passadeira suficientemente firme para dar passagem e três ou quatro pessoas. Depois, basta andar mais dois ou três metros para o lado e construir nova ponte. Assim se fez, assim se filmaram os búfalos, conforme relato noutro escrito, e regressamos ao acampamento. Já próximo, topamos uma outra manada a que os pisteiros se lançaram , literalmente à "lançada", única forma de caça que lhes é permitida para prover ao seu sustento. Fiquei paralisado pelo espanto: meia dúzia de homens, sem dúvida destemidos, mas também pressionados pelo instinto de sobrevivência (excelente estimulante da coragem) tendo escolhido como alvo um determinado animal procuravam feri-lo com o maior número de golpes possível. Todo o resto da manada corria desnorteada procurando livrar-se daqueles loucos e, simultaneamente do companheiro ferido, inexoravelmente expulso do "convívio" dos seus.. Ainda e sempre a sobrevivência. São assim as todas as "manadas"). A luta travava-se longe de nós, por isso não nos podemos aperceber do resultado. Algum tempo depois um dos pisteiros veio muito sonso dizer ao Guê que estava um búfalo ferido não longe dali. Nunca um Caçador deixa um animal ferido, pelo perigo que representa para os humanos, como também pelo sofrimento do animal. Seguimos o pisteiro, o Guê para o abater, o meu Camarada e eu para tentar filmar a carga que o Caçador nos garantiu que o búfalo não deixaria de dar. Uma centena de metros adiante, detrás de um morro de"muchem" ( formiga de asa) surgiu o búfalo encarando-nos. Com o caçador entre nós, cada um apoiando-se num joelho, iniciamos a filmagem, esperando a carga que o Guê se encarregaria de parar antes que se esgotassem os trinta ou quarenta metros que nos separavam. Mas as nossas câmaras apenas dispunham de sessenta metros de filme cada, isto é, dois minutos. Víamos o filme e o tempo a esgotar-se, e nada de carga. Alertamos o Guê que nos disse num susurro: "vou dar-lhe um tiro para o espertar". E deu! Deu, e o búfalo caiu redondo. Consternação geral, gastáramos inutilmente grande porção do nosso precioso e caríssimo material em pura perda. Desgostoso, quiçá, envergonhado o Guê em guisa de desculpa, murmurou: "perdoem-me, mas a gente já não sabe atirar para o sítio errado!"


Outro episódio, este perfeitamente grotesco deu-se numa outra ocasião durante uma breve pausa para descanso. Subitamente irrompe pelo meio de nós um iracundo caçador, português, só depois o soubemos, acompanhado por dois pisteiros armados, e que em alta grita se dirige ao perplexo Guê, dizendo: "je vais vou dire, dans la langue de Monsieur Lamartine, que". . . e prossegue a violenta diatribe, sempre em francês gritado, para o Guê que, com mais de vinte anos de Moçambique, talvez o compreendesse melhor em português. Depois esboça um leve cumprimento na nossa direcção e sai, iracundo como entrara. Por nós, para além de sabermos que "ele" sabia que Monsieur Lamartine falava francês, não ficámos a saber mais nada.

OS DOIS ELEFANTES

Em 1951, o Produtor Felipe Solms para quem eu trabalhava em Angola, chamou-me a Moçambiquie onde estava radicado, a fim de colaborar no filme "Chikuembo" com realização do
meu Amigo Carlos Marques., com quem já´hvia trabalhado em Lisboe e em Angola Do argumento do filme constava uma carga de elefante sobre um dos personagens. Claro que quando houvesse carga de elefante o actor não estaria lá e quando o actor estivesse, não estaria o elefante. Seria tudo uma questão de montagem mas, para isso, tornava-se necessária a obtenção de alguns planos de elefantes correndo na nossa direcção.
O Solms que era completamente louco, mas corajoso, ainda ensaiou deitar-se no chão no caminho dos elefantes que viriam direitos a nós mas que antes de chegar junto dele seriam afastados pela gritaria que todos nós e mais os pisteiros faríamos.
Claro que os elefantes não viriam "à carga", mas sim a fugir dos pisteiros que a gritar e a bater em latas, os perseguiam. Mas nem a Claude, Mulher do Felipe, nem nós todos concordamos com isso e ele, muito a contra gosto, lá se levantou do chão e ficou de trombas – muito apropriadamente, aliás – todo o dia.
Mas há um pormenor importante a reter: a atitude de um elefante a fugir, é muito diferente da de um elefante a carregar. Este vem com a tromba completamente no ar, as orelhas abertas e lançar uns bramidos aterradores. Mas venham em carga ou não, com orelhas abertas ou fechdas, e "de tromba caida", ver avançar sobre nós quatro toneladas de força bruta e a uma velocidade que a passada de quase tês metros, compensa da "lentidão" de movimentos, é uma experiência que, como dizia o Vasco Santana: "é porreiro para a gente contar mais tarde" Mas há experiências menos incómodas. Para se avaliar da velocidde de um elefante andando tranquilo e pachorrento, aqui vai um exemplo: o Carlos e eu corremos desenfreadamen atrás de uma pequena manada (menos risco do que um solitário) que havia acabado de passar pachorrentamente por nós. E quando chegávamos a cerca de vinte metros deles, parávamos
para filmar, já eles estavam outra vez fora do nosso alcance.
Mas como mesmo a correr, fugir, eles por vezes vão levantando a tromba para farejar , a grande distância e detectar o possível inimigo. optou-se por provocar uma fuga na nossa direcção. Depois, na montagem se aproveitariam os bons momentos da tromba levantada. Para isso seria preciso fazer vários planos de vários elefantes. Este facto não constituiria problema dado a quantidade de manadas naquela zona da Zambézia.
Começámos ou por outra, continuamos na nossa peregrinação pelo mato, que começava por volta das quatro da manhã e se prolongava até meio da tarde; sempre a pé e em silêncio. O que me custava muito (não o a "pé", mas o" em silêncio”)
Finalmente o G0ustave Gué, o caçador profissional suiço qu era o nosoo guia, o nosso protector e anfitrião no seu magnífico acampamentio, encontrou um local propício. Os pisteiros tinham localizado dois elefantes num "Tando", planície, com uma parte pantanosa e com um caminho já anteriormente trilhado pelos animais. Assim a equipa colocou-se na saída mais provável dos bichos, mesmo no trilho à beira do terreno pantanoso. Aí ficou o meu camarada Alfredo Gomes que era o operador titular do filme com o Gué ao lado dele. Para um local menos provável mas ainda assim possível a noventa graus daquele, fui eu, protegido por um caçador negro muito experiente, o “Capitão” que um dia, anos antes, tinha tirado o Gué dos cornos de um búfalo ferido ganhando assim gratidão do Patrão (e a reforma).
Pormenor de forma alguma despiciendo: o Gué estava armado com uma carabina 404, especial para elefantes. Só é usada a curta distância, mas o impacto corresponde a duas toneladas. . Reverso da meda0lha: a carabina só comporta quatro projcteis...QUATRO ! Mas dizia o caçador com muito espírito: " também tendo de atirar tão perto de que serviriam mais balas s? Não haveria tempo para os utilizar"
Então a situação criada era a seguinte: os pisteiros espantariam os elefantes com gritos e -bater de latas. Estes correriam quase de certeza para o lado do Gué e do Alfredo que os filmaria de frente e eu apanhá-los-ia de lado correndo da minha esquerda para a direita. Se viessem direitos a mim o “Capitão” daria uns tiros para o ar para os desviar da rota e eu filmaria o que acontecesse.
Como o vento estava de feição, os animais, - eram dois como já disse, - não nos sentiram e na fuga foram realmente direitos ao Caçador. Eu filmei tudo desde que eles entraram em campo à minha esquerda até que foram atingidos pelas balas 404.
Foi impressionante: eles vinhm um atrás do outro com diferença de muito poucos metros, quase colados e eu tive a sensação de que tinham chocado contra uma parede invisível. Não é que tenham estacado; não, eles encolheram-se como um harmónio. Rigorosamente a frente parou de repente e os quartos traseiros ainda “andaram” reduzindo por momentos as dimensões dos animais. Foi uma imagem, não; é uma imagem que nunca mais esqueci. Fecho os olhos e volto a ver tudo com toda a nitidez. Já lá vão 51 anos.
Fui ter com os meus colegas e olhei para os dois elefantes. Um estava a dez metros da câmara do Alfredo e ou outro ligeiramente atrás, não mais de três metros. Ambos tinham sido atingidos no mesmo ponto. Uma depressão na testa entre os olhos. O tiro dado praticamente debaixo para cima (o Gué tinha pouco mais de 1.50 m., atingiu directamente o cérebro que aliás ambos tinham expelido pela tromba.
Não gostei do que vi. Como é fácil exterminar aqueles animais magníficos, pacíficos e de tal corpulência com uns poucos gramas de aço!
Salva-se (?) neste caso a utilidade destas mortes. O Caçador fornecia carne para o pessoal da “Sena Sugar” a Companhia açucareira. Mas por vezes; vees demais, matam-se para obter trofeus: uma pata, os dentes, e pouco mais.
A tempo: se bem lembro mataram-se, para este filme quatro ou cinco elefantes.



KISSANGES NA NOITE


Kissanges na noite

Ano de 1950, Angola. Nova Lisboa. Ou antes, Huambo nome mais suave para o ouvido, apesar da pronúncia enérgica com o H aspirado tão peculiar aos Humbundos, como os "clics" o são aos Buchimanes. E foi exactamente na noite do Huambo: a minha primeira noite sozinho, fora de Luanda, que fui surpreendido por um som plangente, repetitivo como o de um piano de poucas notas, mas mesmo assim, agradável e apelativo em que, pela primeira vez me atrevi pelo escuro da noite africana. Era uma cidade, é certo, mas as cidades do interior Angolano daquele tempo seriam vilas em Portugal - na Metrópole como então se dizia – e estavam recebendo um grande impulso de desenvolvimento tão rápido como desordenado. Esta cidade desenvolvia-se em dois braços divergentes, desde o Centro que se formara junto da Estação do Caminho de Ferro de Benguela, seguindo um pela Granja que, deixando logo no início o Paço Episcopal à direita, daí em diante, só capim, alguns eucaliptos e cedros bordejavam o traçado, - o traçado apenas - da Larga Avenida que viria a ser, a caminho do Bairro Residencial só de vivendas. Á data a que me reporto, em princípio de construção. A outra futura Avenida era paralela à Via Férrea e, tal como a Granja, parecia ter quase um quilómetro, e iria terminar perto do Palácio do Governo da Província. Foi por esta última que me aventurei na intenção de percorrer apenas duas ou três dezenas de metros. Mas foi quando já decidira voltar para trás que o som que antes me soara longínquo, se intensificou e pareceu mais perto. Arrisquei mais uns hesitantes passos pela escuridão, e aos meus olhos, agora mais habituados ao escuro, deparou-se uma imagem que jamais esqueci: iluminado pela trémula luz de uma fogueira, que mal o aqueceria, um homem muito velho, mal cobrindo o seu pobre corpo seminu com um "Cambriquito," o agasalho comum aos mais pobres dos pobres. Era o guarda de um dos vários armazéns existentes aqui e além e já condenados a breve demolição para dar lugar à futura Avenida.Por fazer frente à linha férrea, só teria casas de um lado, o que viria a granjear-lhe o título de Avenida do Colete.
Por agora estamos ainda presos ao encantamento do som plangente que me atraíra no silêncio da noite africana. E então pude ver e ouvir de perto o kissange. Era das mãos secas daquele velho que brotava o som mágico que me guiara até ali. Quedei-me fascinado. A imagem era como que a materialização do som: eram indissociáveis. No silêncio e na escuridão profundos, recortado pela chama da pequena fogueira, o velho negro, de olhar vago, alheado de tudo em volta. Parecia não dar sequer pela minha presença. segurava nas duas mãos um pedaço de madeira onde estavam cravados por um extremo umas poucas lâminas de metal, dispostas como uma mão aberta. Eram estes "dedos" irregulares, que os hábeis dedos do velho negro usavam como as teclas de um piano, fazendo-as vibrar, tirando delas os sons diferentes conformes a sensibilidade de cada "dedo." Ali fiquei um tempo que não vivi, mergulhado num quase esquecimento. Pouco a pouco recuperei do êxtase e perguntei-me: o que faria ali, que guardaria aquele pobre velho tão frágil, junto de uma fogueira que mal o aqueceria, quase adormecido pelo som da sua própria música.?'' Como poderia ele defender um enorme armazém de porta escancarada e tão escuro e profundo, quanto era dado ver ? E o som dos kissanges acompanhou-me todo o caminho passando de uns para os outros a mensagem de nostalgia de um recém-chegado aos Trópicos. E outros armazéns se seguiram. E outros guardas. igualmente velhos; mais cambriquitos, e sempre o som dos "kissange" adoçando a noite. E persistia ia pergunta: que força protegia aqueles frágeis velhos e os valores à sua guarda? De onde lhes viria essa a força? Só muito mais tarde o soube: de si próprios, da sua idade, da Velhice, enfim! Do respeito pelos Velhos, tão enraizado na Cultura, nos costumes angolanos que não permitiria que alguém desrespeitasse um Velho. Em Angola o uso de "Mais Velho," ou O Mais velho, são sinónimos de consideração, respeito. Também é uso dar o tratamento de Mais Velho, mesmo a quem o não seja de facto mas por ser considerado como "O que Sabe Mais".
E é para mim muito triste ver o Kissange reduzido a objecto de falso artesanato para turista ver. Ao longo dos muitos anos que me permitiram correr Angola de lés a lés, muitas vezes ouvi o lamento do Kissange, mas nunca como naquela noite de mistério e nostalgia do Huambo, em 1950.

segunda-feira, agosto 14, 2006

O senhor Angelo

Antes de falar do Sr. Angelo, deixem-me situar o"cenário" de há oito décadas. Desde os anos oitenta do Século passado que ali não ia. Fui lá hoje, 8 de Agosto de 2006, isto é, não fui, levou-me o meu neto, que as minhas pernas conhecem bem o caminho mas não o podem percorrer sozinhas. E lá estava tudo como recordava desde a minha infância, adolescência e idade adulta, Lá está a Rua dos Remédios, a bifurcação com a Rua do Vigário, o começo da descida para o Chafariz de Dentro com sua Rua de S. Pedro, entrada para a Alfama profunda, e onde se vendia peixe à porta de cada casa. Mas eu não estou aí. Continuo frente è Rua do Vigário e olho para direita e vislumbro o Largo de D.Rosa com as escadinhas que levam à lembrança de um episódio anterior: o “Egas”, nome que escondia o “Fuas”. Este o verdadeiro protagonista do acontecido. Não vale a pena esconder mais. Não há ninguém daquela família, nem provavelmente vizinhos à roda dos noventa. Também aí assisti a um “Velório” de espantar, e que já relatei noutro passo. E lá estou eu desfiando recordações encostado à mesma parede onde me encostava há quase oito décadas com os meus amigos e de onde mecanicamente nos desencostávamos e voltávamos a encostar, ao ritmo da passagem do polícia de giro. Tudo mudado como eu já sabia, (menos "a parede") . Só encontrei um artesão trabalhando em cobre, que com a idade de setenta e cinco anos, "sabe" que no local da sua loja havia um lugar de hortaliça. Mas eu sei: era da mãe de um dos meus amigos, que andava a aprender saxofone nos poucos momentos que se escapava à venda de couves. Era o"Saxonabo." Aprendeu e chegou a fazer parte de um Grupo Musical, dos muitos que "abrilhantavam" os Bailes, que ainda eram mais. Mas ali o importante era a pequena Leitaria da família Gonçalves, que nós à noite enchíamos com as nossas discussões de futebol, único assunto que era permitido discutir em voz alta. Ao lado era a Tipografia do Sr, Serra, pai do Professor Serrinha e do Zé, este tipógrafo, e que fui encontrar há talvez quinze ou vinte anos, porteiro de um edifício da Rua Victor Cordon. Do Adelino Serra, o Serrinha, mais velho do que eu três anos tive notícias há já muito tempo mas não pude vê-lo . A Tipografia tinha ganho o nome de Museu porque ao lado da porta tinha uma pequena vitrine com revistas (?) que já lá deviam estar quando nós viemos ao mundo e que por lá ficaram até à mudança num pequeno Snac-Bar, ao lado da Leitaria que teve a mesma sorte. Mas é da Tipografia que tenho as mais agradáveis e a mais dolorosa das recordações. Depois da morte do velho Serra a Casa foi tomada por um tipógrafo, o Sr. Angelo, que mais do que ganhar dinheiro, vivia a paixão da profissão. E falava dela com um carinho tocante. Adorava explicar como tudo era complexo e apaixonante. .Falava-nos do"componedor," dos "quadratins," etc., e ficava radiante quando um de nós acedia a pegar-lhe e a lá meter as letras de pernas para o ar. Os tempos correram, nós fomos crescendo com eles, e com empregos duvidosamente estáveis , só à noite nos reuníamos na leitaria dos Gonçalves, `à hora a que a Tipografia já fechara. Mas eu não tinha essa rotina, trabalhava em Cinema,, um mundo de profissões as mais variadas, e que só se podem abraçar com paixão e. . . sacrifício. Por isso eu esperava semanas, ou meses pelo início do próximo filme "que vai já começar para a semana que vem". Assim, poderia ter largos períodos de desemprego, seguidos de períodos igualmente longos em que não parava nem para dormir, (chegava a trabalhar-se de dia ara um filme, e de noite para outro. ) Mas nos "maus" períodos continuava a frequentar a Tipografia do Sr. Angelo. Era um homem muito doente, creio que sofreria da doença da profissão: envenenamento pelo chumbo . Tinha um aspecto mais de avelhentado do que de velho. Usava uns óculos de lentes grossíssimas por trás das quais brilhavam uns olhos inquiridores a que a espessura das lentes dava um ar de olhos de peixe. Pessoa muito culta, coisa comum entre os "compositores que faziam questão de se demarcar dos "impressores". Tínhamos um bom relacionamento quase de Avô para neto. Convidava-me frequentemente para jantar ou lanchar em sua casa com a família. Moravam na parte baixa de Alfama, quase no extremo, junto do Museu Militar e póximo de Stª Apolónia .Imperdoavelmente não desci ontem até ao beco para recordar o nome. O nosso convívio foi bruscamente interrompido pela minha prisão em Janeiro d 1934.. No meu regresso, dois anos depois, estreitou-se ainda mais a nossa amizade. O Sr. Angelo era um grande admirador dos clássicos portugueses, alguns dos quais eu havia encadernado e. . .devorado na prisão. Eça, Ramalho Garret etc., e o incontornável Don Quixote, este infelizmente em espanhol. Tudo isto cedo demais. O mesmo se passou com outros autores lidos na prisão: Emile Zola ( Germinal, Fecundidade, O ventre de Paris. Etc. o clássico de Vítor Hugo, "Os Miseráveis." Guerra Junqueiro, com o super proibido "A Velhice do Padre Eterno," tudo isto recebido através do nosso "correio" de reconhecida eficiência. Tudo isto não. Devo fazer justiça a alguns livreiros a quem enviávamos pedidos de livros que eram geralmente satisfeitos. Só mais tarde vim a perceber que a leitura febril, e a pouca idade , não me terão permitido ler o que estava para além das palavras, das belas frases de efeito. Foi o Sr. Angelo que me mostrou que o "Gavroche" não era só o menino que morrera nas barricadas. Que o "Senhor Ventura"ou "Jean Valjean" permanecem vivos através de injustiças , das quais eu próprio fui testemunha, e aqui quero deixar o relato de um de entre tantos outros. O camarada que fora preso comigo, foi condenado a dez anos de degredo. Tinha 18 anos, Cumpriu CATORZE. Só voltei a encontra-lo em 1993, com setenta e sete anos bem marcados no rosto envelhecido. Uma vez mais me perdi pelas veredas da memória.. Peço perdão e voltemos ao Senhor Angelo, que, como digo mais acima, se abria bastante mais, comigo desde o meu regresso. Contava-me as suas lutas de sindicalista durante a Primeira Republica. Sempre com um olhar brilhando por detrás das grandes lentes, mas que não podiam esconder o sofrimento. Durante aproximadamente um ano tive trabalho quase continuo e com várias estadias na província. Não vinha ver os meus Pais se não por rápidas sortidas nocturnas, até porque morava no lado oposto da Cidade e porque o trabalho me ocupava o dia inteiro e por vezes também parte da noite quando não a noite toda. Quem alguma vez trabalhou em cinema, me entenderá. Parece que estou a sentir a consciência pesada. E de certo modo estou. Finalmente um dia dirijo-me à Tipografia, e estava lá o Zé Serra. Perguntei pelo sr. Angelo, e o Zé , com um ar de admiração, diz: "o Sr. Angelo morreu há meses" Fiquei paralisado. Não poderia eu ter arranjado durante aquele longo período um "bocadinho" para ir visitar o meu Amigo ? Mas eu não podia ter imaginado que o Sr Angelo, o meu Amigo tivesse adoecido de repente. Não pude aceitar que a família não tivesse comunicado a meus pais que certamente me avisariam . E para cúmulo de falta de sensibilidade, ainda tentaram convencer o Sr, Angelo de que eu me teria esquecido dele. Mas ele não se esqueceu de mim. Sempre que a mulher e a filha o iam ver ao hospital, ele dizia: " não, ele não sabe, se soubesse viria ver-me." E terá sido assim até ao último dia. Nunca descreu da minha amizade. Terá essa certeza sido um bálsamo para o seu desgosto ? ter eu essa certeza e não sentiria tanto o remorso que me assalta sempre que, como agora, penso no Sr. Angelo, o meu inesquecível Amigo da Tipografia da Rua dos Remédios, e da minha juventude.

quarta-feira, agosto 02, 2006

O nossAlferes Palheta

1937.Assentei praça no Grupo de Artilharia Contra Aeronaves, Unidade considerada de Elite aquartelada na Cidadela de Cascais, residência do Chefe de Estado, General Carmona. Tudo nobreza e distinção. Mas a soldadesca,essa é que não ia em nobrezas e distinções. Ninguém gostava da Tropa: recenseados, convocados,inspeccionados ( nus perante gente vestida )apurados,incorporados e,finalmente enviados para os mais variados destinos,perto ou longe das nossas terras de origem ou de residência. Mas o recrutamento fora feito entre o que havia no "Mercado" e, na década de trinta o analfabetismo era, o que hoje é difícil imaginar. Houve mesmo umas acções de propaganda visando incentivar os jovens a alistar-se como voluntários, estes pelo menos,saberiam ler.Mas para nós,os "involuntários", era difícil compreender que uns tontinhos tivessem vindo meter-se de motu próprio naquele meio opressivo onde nós só forçados ingressáramos. Aliás, todos irmanados pelo mesmo sentimento de azedume por aquela entrada compulsiva no Glorioso Exército Português, estendíamos esse sentimento até aos voluntários.Esta animosidade, não tinha justificação, mas tinha uma explicação plausível. Os voluntários tinham os números, mais baixos,e na tropa antiguidade é um posto, formavam à direita e,. . . usavam polainas!!!. Porque eram ou viriam a ser, condutores auto. Assim, cheios de empáfia,as exibiam bem engraxadas e,ainda que não muito bem talhadas,eram mais agradáveis à vista e muito mais práticas do que aqueles metros de fazenda das "grevas" que nós "serventes" mal podíamos enrolar em volta das nossas juvenis e esbeltas pernas que,"sádico," o grande espelho da caserna nos devolvia,transformadas em grosseiras trancas. Vejamos até onde pode levar a vaidade, Mesmo correndo o risco de um possível castigo, alguns "serventes." punham de lado o desprezo pelos "lateiros" e alugavam-lhes as polainas. Os donos não poderiam sair do quartel; mas saiam eles levando-as embrulhadas,e colocando-as já longe de Cascais.E
nós,com "fumaças" de seres superiores, olhando com pueril desdém para outros que, soubemo-lo mais tarde, tinham boas e até dramáticas razões, de onde tirar a coragem para se alistar voluntariamente na tropa que ao fim e ao cabo, tanto custou a suportar a nós como a eles. Naturalmente, apareceram grupos aleatoriamente formados, mas não tanto que albergassem conjuntamente a “nós e eles". Felizmente que os serviços, as tarefas, os esforços e as chatices eram, também aleatoriamente, distribuídos a “nós” e a “eles,” acabando por fim com tão pueril discriminação. Mas enquanto durou, durou. E foi durante este período que se deu o acontecimento que originou a lenda do “Alferes Palheta”. O meu grupo integrando dois serralheiros//espingardeiros da Fábrica de Braço de Prata, Jaime, o “Pianinho”, e o Henrique´ dito “Pavão”, o João da “Tobis,” todos de Alfama, o Galriça, um castiço do Bairro da Ajuda, “o Barbeiro,”, e finalmente o Aprígio, a que chamávamos “Marília” em homenagem à irmã. Bem se perceberá porquê, e o “Cascais", ambos, de . . .Cascais. Numa (quase) fatídica tarde, estávamos comendo uns gostosos torresmos na praia da Fortaleza , uma praínha quase privativa do Quartel , e a que se tinha acesso pela Porta do Fosso, mas que nos era interdita . De súbito, fecha-se a porta , deixando-nos “presos-cá-fora” o que seria certamente punido. Os nossos camaradas que se encontravam sobre a muralha deram-nos a aterradora notícia: o Oficial de serviço ia mandar tocar a formar e quem faltasse : porrada pela certa. Já imaginávamos o Tenente e o sargento, este certamente o autor da armadilha, à Porta de Armas de canhenho e caneta em punho à espera do nosso grupo vindo da rua, coisa extremamente grave. A nossa preocupação sobre o que nos iria acontecer à entrada não tinha medida. Nisto, o Seis da minha Bateria, o Américo, chamado Palheta dado o efeito do nariz na cara magra daquele "lateiro," um paz d’Alma comprido desengonçado por quem não se dava nada, teve um rasgo de energia e decisão: trepou para os ombros de um camarada, conseguiu agarrar um bordo da muralha, outros de cima o puxaram e ele estava a salvo. Bastaria uma pequena corrida até à formatura.. Mas não; aquela figura apagada e triste, tirou o cinturão, ligou-o ao de outro e ambos resgataram uma a uma aquelas mesmas orgulhosas criaturas que alguns momentos antes nem teriam dado pela sua existência. Não houve tempo para agradecimentos, sequer para o reconhecimento da rapidez de acção e, sobretudo da grandeza d’Alma daquele . ."lateiro". Recebi, recebemos todos uma lição de solidariedade humana, se quiserem : de Amor ao próximo . O sentimento que percorria toda formatura era de gozo pelas tristes figuras do sargento e do oficial esperando em vão pelos "soldados desconhecidos," e acabando por vir embora de orelhas murchas. Aqui começou nossa amizade e gratidão para com o "Palheta." Depois do toque da Ordem, saímos e fomos confirmar a entrada do "Palheta" para o nosso grupo , na Tasca do Marinheiro com direito a fado pelo "Pavão" e muitos copos por conta da casa .. Foi aí que reparamos que o Américo trazia nos ombros a insígnia da especialidade, um automóvel. Mas era um descapotável muito estreito e comprido, que ele trazia brilhante de "Solarina" mais parecendo um galão de alferes. Então nós, por unanimidade, o promovemos a "Alferes Palheta." Foi com a convivência, com a mútua confiança, entretanto selada, que ele nos confidenciou o porquê da sua entrada na tropa dois anos mais cedo como voluntário. _- Vivia com a Mãe, velha e doente, sem outro amparo além dele.. Para lhe dar uma vida melhor, pensou ir para chaufeur de taxi, o que na altura era uma boa profissão. Porém tudo ficava muito caro, com as lições, o exame e finalmente a ambicionada carta. Daí o recurso à carta militar que depois se poderia trocar pela civil, por "dez reis" de mel coado. Todavia este desejo , e forte necessidade, não estavam a ser satisfeitos pela realidade.. O nosso amigo era uma negação para o volante, e o pior é que não se dava conta disso. Ele, como todos os outros aspirantes a condutores, tinha um carro distribuído para efeitos de limpeza e conservação. O dele era um dos enormes e antigos camiões que raras vezes saiam. Mas um dia mandaram-no com mais uns homens a uma pedreira para ao lados da Serra de Sintra. No regresso, já com o carro muito mais pesado, ao descrever uma curva derrubou um sinal de transito de cimento. Limparam os vestígios de pó de cimento e como o carro não sofrera nada, vieram "cantando e rindo" para o Quartel e fecharam-se em copas.. Passado algum tempo chegou à Secretaria um Oficio da C.M de Cascais,, a que eu tive acesso , reclamando o arranjo dum poste, que, supostamente teria sido derrubado por um dos nossos camiões. Dizso fiz umi rigoroso relatório ao Noss'Alferes Palheta afim de se precaver contra maus ventos que aí viriam. Não vieram; antes assim.Lá foi um Oficial ao Parque verificar os carros,, levando-me a tiracolo para ir registando o que ele dissesse.. Como não viu nada, encerraram o caso, e mandaram reerguer o poste e tudo morreu ali.Se desta vez o camarada se salvou, na segunda não conseguiu tirar o corpo para fora da lide, e foi colhido. A Unidde ia sair em força , perante o Comandante Coronel Pereira Coutinho. Cada um dos três Comandantes de Bateria ocupava um carro, muito pequeno descapotável de forma que seguiriam de pé em continência enquanto a coluna desfilava frente ao Comandante.. Quando o Comandante da Coluna ordena "em frente," fá-lo com um gesto largo do braço direito em arco por cima do ombro, como na cavalaria, ficando hirto apontando em frente. Todos os carros arrancam ao mesmo tempo.. Arrancaram sim, mas o carro da frente arrancou. . . para trás. O Capitão ficou sentado no banco enquanto o condutor, o "Alferes Palheta" fazia esforços para arrancar, e seguir em frente. Eu, não seguia com a Formação e foi da porta de Secretaria que assisti a tudo, até ali. Porque me retirei para não ver mais. Estava a poucos dias de passar à disponibilidade Alguns dos condutores já tinham feito exame e esperavam o resultado com a natural ansiedade.. Um de entre eles, um cabo já com alguns anos de tropa, não me largava a porta da Secretaria,, até que me viu a dactilografar algo que julgou ser a relação dos resultados. E não se enganava,. Chamou-me e perguntou: "então pá, fiquei aprovado?" Fiquei perplexo: "então tu vais de encontro à janela do Barbeiro de Paço d’Arcos e fazes uma porta, e ainda perguntas ?" – "mas também foi só isso" respondeu-me o infeliz. O G.AC.A não teve outro remédio se não mandar arranjar a janela, mas o barbeiro aproveitou a deixa e quis antes uma porta em vez da falecida janela. . Chegou o momento, Março de 1938, em que me despedi de Cascais, uma linda e tranquila Vila de Pescadores. (naqule tempo) Ainda ficaram alguns dos que já tinham feito exame e outros à espera de vez para o fazer. Entre estes o Américo. As nossas vidas tomaram rumos diferentes e não nos tornamos a ver. Entretanto fui para Angola. e numa rápida deslocação a Lisboa, já nos anos cinquenta, entrei, por um motivo de que me não recordo, nos tristes corredores do Hospital de São José. Na obscuridade vejo uma cara conhecida, era o meu camarada "Alferes Palheta," de rosto avelhentado, vestia de ganga, e empunhava uma esfregona.. Era "servente" !.