Roxa xenaider

sábado, agosto 20, 2005

um drama animal

Angola, 1950.
Não foi um mas sim dois dramas. Do primeiro não assisti ao fim, embora o tenha podido adivinhar. Mesmo os animais selvagens, para quem o homem é o maior e principal inimigo, em circunstâncias extremas, podem sentir-se forçados a recorrer a ele. A velha estória infantil, já perpetuada pelos desenhos animados, do velho leão ferido na pata, bem pode ser corroborada por estas duas que vou contar – não com leões – mas mais modestamente com um antílope e uma zebra. Parti do Lobito ao fim da tarde rumo ao Lubango (Sá da Bandeira) numa carrinha de caixa aberta com o Inspector dos Caminhos de Ferro, Albuquerque Cardoso, e conduzida pelo Nascimento, um colega meu de Escola que não via desde o Exame da 4ª classe e que inesperadamente reencontrei nesse mesmo dia. Do Lobito a Sá da Bandeira eram cerca de 300 quilómetros por uma estrada de terra batida com tantos buracos para baixo como altos para cima. Já bastante de noite entrámos numa zona recentemente ardida. Por ali tinha passado horas antes uma queimada, e tanto de um lado como do outro, estava tudo calcinado e havia ainda restos de árvores a arder e o terreno estava coberto de carvões incandescentes. Nisto surge parado à nossa frente um Olongo. Era um macho magnífico. O Olongo é um dos maiores antílopes, a par da Palanca e do Guelengue, só ultrapassado em corpulência pela Gunga. É lindíssimo e caracteriza-se pelos cornos que são em helicoidais. O Olongo aproximou-se do carro a coxear muito (tinha os cascos queimados, concluímos), chegou junto da janela do lado do condutor e meteu o focinho dentro do carro, o Nascimento chegou a acaricia-lo. Mas não podíamos fazer nada por ele. Seguimos viagem na triste convicção de que em breve acabaria nas garras de um leão. Passado pouco mais de um ano, 1951, estando em Moçambique com o Felipe Solms eramos apoiados por Gustave Gué, suiço, caçador profissional radicado em Moçambique há mais de vinte anos. Caçava principalmente búfalos e elefantes para fornecer carne à companhia "Cena Suggar", para o que tinha licença para abater um determinado número de peças por ano. Dou estes pormenores para caracterizar bem a pessoa, como homem habituado a matar animais, portanto já com uma sensibilidade couraçada, diferente de um qualquer citadino como eu ainda era na altura. O Solms era bastante louco e teve a ideia de fazer um plano em que uma manada de zebras passasse por cima da câmara, e consequentemente sobre o operador que não era tão louco mas quase. Como eu já tinha visto touros a passar cinco vezes sobre o Virgílio Teixeira sem grande perigo e as zebras só passariam uma vez, fui na convera. Portanto, no dia em que se localizou uma grande manada de zebras num "Tando" muito amplo e propício, mandaram abrir uma cova... não xiça! Uma cova não; um buraco onde cabia o tripé da máquina ficando esta ao nível do solo camuflada com capim. E eu metido no buraco, meio sentado. Muni-me de um livro policial para me entreter durante a espera e aguardei. Claro que quando as zebras chegassem junto, isto é, quase junto, eu me baixaria mais. Enquanto isso, lá ao longe, via a manada correndo de um lado para o outro perseguida pelos pisteiros que procuravam empurrá-la na nossa direcção. Isto é, na minha! Mas esta foi uma daquelas ocasiões em que deus escreveu direito por linhas tortas. (ainda não percebi porque não endireita primeiro as linhas e escreve depois). O vento, O BENDITO VENTO, mudara e passara a soprar de mim para as zebras. Daí que elas nunca mais viessem para o lado de onde vinha o cheiro do "inimigo". Passado um ror de tempo em que li o livro quase todo, o Gué e o Solms desistiram da ideia e vieram buscar-me com a carrinha. No caminho, e quando passávamos pela zona onde as zebras tinham andado em grande correria, sai de trás de um morro de "Muxém" (em Angola chama-se Salalé, e é a formiga de asa) uma zebra ainda jovem, arrastando penosamente uma perna. Tinham passado por cima dela e sofrera fractura da anca. Pois arrastando-se veio na direcção do carro em busca de... nem ela sabia o quê. E o Gué, aquele homem calejado por anos de profissão, disse-nos: "Vou fazer uma coisa que me custa muito, mas não há remédio". Saiu da carrinha com a carabina, e nós, o Solms e eu, só ouvimos o tiro, nem olhámos. E nenhum de nós três disse palavra dali até ao acampamento. Também agora não vale a pena dizer mais nada.

no Luiana

Farei agora o relato de uma operação militar que inesperadamente se nos deparou. Tratava-se do hastear da Bandeira Nacional no edifício abandonado da Administração do Luiana que ficava exactamente na ponta sueste de Angola e estava sob a acção da guerrilha do Savimbi. Tivéramos conhecimento dessa acção em Menongue – Serpa Pinto - pelo Governador da Província, Comandante Sousa Machado, uma pessoa de uma cultura muito acima da que se costumava encontrar por aqueles "fins de Mundo". A nosso pedido acedeu a que partíssemos para o Rivungo, na margem direita do Rio Cuando. Todavia, não permitiu que fizéssemos a viagem no nosso Land-Rover, aliás equipado com tudo o que nos tinha permitido até ali viajar com o conforto e a segurança possíveis. Depois de nos terem fornecido camuflados, partimos no avião do Governo Distrital rumo ao Rivungo. Mas no caminho caiu uma chuva de tal intensidade que tirou quase por completo a visibilidade. O recurso foi voltar as costas à chuva e procurar o campo de aterragem que servia uma Coutada de Caça. A fuga foi dramática; a chuva perseguia-nos com tal velocidade que nos alcançou pouco antes de aterrar. Felizmente o piloto já tinha avistado a pista e posto o avião no enfiamento. Mesmo assim aterrámos pelo tacto, e chegámos mesmo até ao fim da pista. De súbito, como era frequente, a chuva parou, ou passara por cima de nós e continuara na sua rota. Então demos conta de que tínhamos parado para lá do fim da pista e a escassos metros da mata. Com a urgência que se impunha, não convinha que o piso amolecesse mais, deu-se a volta ao avião, e descolamos rumo ao Rivundo. Várias surpresas me esperavam ali, a primeira das quais, foi o encontro com o Administrador Mota Torres que já conhecia de Luanda, das tertúlias em casa do Pintor Neves e Sousa. Mais tarde voltámos a encontrar-nos algures no Norte de Angola, numa das minhas muitas deambulações em busca de imagens. Era um homem muito terra-a–terra, não lhe ficando nunca uma palavra engasgada na garganta, o que é bem de ver, já lhe tinha custado alguns dissabores. Outra boa surpresa, foi encontrar uma secção de Fuzileiros que acompanhara durante uma Operação no Rio Zaire, mas esta sem nada de assinalável. Mas nada é perfeito nesta vida, e não podia faltar a mosca na sopa. Os Pides residentes no Rivungo, pequena povoação localizada na margem direita do Rio Cuando, fronteira natural com a Zâmbia, agora deserta de habitantes, onde existia uma muito vandalizada Missão Católica, julgo que feminina. Havia também um Posto da P S P, entregue a um solitário Chefe, e a Administração que tinha jurisdição sobre uma área pouco povoada. Era zona de acção da Unita. Estávamos a cerca de 180 quilómetros do Luiana, na ponta Sueste de Angola, que iria ser o nosso objectivo. No dia seguinte chegaram uns jeeps vindos de N’riquinha, com o Capitão Oliveira Martins, um furriel e alguns soldados. Vinham juntar-se aos Fuzileiros para a Operação já referida. Entretanto, aterrou um bendito avião militar trazendo abastecimentos. Com eles vinha uma encomenda para o Administrador, e que constava de... Camarão grande, congelado. Mas como nem tudo são rosas e camarão, trazia também um novo pide que vinha substituir um dos residentes e assumir a Chefia. A convite de Mota Torres, "o dono do camarão", fomos ajudá-lo a acabar com ele e com algumas cervejas geladas. Presentes estavam o Capitão, o Chefe da PSP, o Sargento dos Fuzileiros, o furriel dos Caçadores, nós os três civis e mais um comerciante da
Região cuja casa tinha sido saqueada pela Unita e que iria ser o nosso guia. Mas não se pôde evitar a mosca na sopa, que até eram duas, personificadas pelos dois pides, o que já cá estava e o que veio chefiar. Durante a confraternização que decorreu muito bem, como aliás era esperado por gente que vivia em clima de guerra a oito mil quilómetros de casa. Em determinado e infeliz momento, não sei a que despropósito, o tal novo chefe da pide, enquanto descascava um camarão diz em tom displicente: "Eu, se mandasse, já tinha acabado com o terrorismo há muito tempo". Mota Torres, sem levantar os olhos do camarão que descascava, perguntou-lhe: "Que idade é que você tem?" - "Vinte e seis anos". E ele, continuando às voltas com o camarão, "Ora Porra!" Ninguém se riu, (quem é que se ri de um pide?), e o assunto morreu ali. Chegou o dia da partida para o Luiana. Aqui, falha-me qualquer coisa, sempre se passaram trinta e sete anos, no tempo e por cima de mim. Creio que saímos com três jeeps, portanto nunca poderiam ir mais de 18 militares. Mas nós, jornalistas éramos três, pelo que se sacrificou o Emílio Felipe redactor, pelos repórteres de Cinema e fotografia. Nós depois, faríamos o relato ao Emílio. Choveu durante o caminho todo e para completar o programa, um dos carros empanou, e não seria possível seguirmos todos em dois carros. Em vista disso, o Capitão Oliveira Martins, mandou um jeep com o condutor e mais 2 ou 3 homens como segurança de volta ao Rivungo, trazendo um jeep e rebocando o outro. Ali ficámos por longo tempo, debaixo de uma chuva persistente, mas não à moda de África. Abrigávamo-nos com os ponchos impermeáveis, e nem pensar em fazer uma confortável fogueira. Lá para as tantas apareceram os mecânicos com dois jeeps, um para nós e outro para rebocar o empanado. Reconstituiu-se a coluna e seguimos viagem. De manhã chegámos ao Luiana onde a residência do Administrador, era quase um Palácio, obedecendo aliás, a uma directiva do Governo em relação à qualidade das residências de fronteira. O mesmo já eu constatara em Noqui, na margem esquerda do Rio Zaire, fronteira com o Congo Belga. Foi, pois, no ponto mais alto do "Palácio", que foi hasteada a Bandeira Nacional, com todas as honras militares. Tudo foi detalhadamente passado a fotografia e a cinema, para isso ali estávamos. O Raul Moreira fotografou e eu filmei tudo em pormenor. Aliás a cerimonia foi cumprida com toda a dignidade, mas foi muito breve. Feito isto, para a minha ingénua surpresa, arriaram a Bandeira, dobraram-na segundo o ritual e... vamos embora. Perante o meu espanto, diz-me o Capitão: "Então você julga que se a tivéssemos deixado estaria lá mais de meia hora? Nós a virarmos costas, e os gajos, que devem ter assistido a toda a cerimónia, viriam buscá-la como um trofeu". Fiquei com a cara que se calcula. Era altura de regressar. E aqui mais um desvio, ou antes, retrocesso. Mas não há nada a fazer, tenho uma mente indisciplinada. Bem sei que poderia voltar atrás e, com a facilidade que o computador proporciona, poderia muito bem ir meter esta prosa no lugar certo. Mas fi-lo tantas vezes, que já não há paciência. Por isso aqui vai:
Quando partimos de Serpa Pinto, o nosso jeep foi levado pelos caçadores guias para a Coutada onde estivéramos aboletados, e ficara combinado que entraríamos em contacto via rádio quando fosse necessário. Acertaram-se as horas de escuta, e tudo ficou OK. Na véspera da partida para Luiana, através do rádio da Administração, chamámos o rádio emissor/receptor do nosso jeep e informámos os amigos da Coutada, de que estaríamos dentro de três(?) dias, desde a hora X até à hora Y, numa grande sanzala cujas coordenadas nos tinham sido dadas pelo Comerciante. Aliás a sua casa saqueada era um ponto de referência para os caçadores guias que conheciam muito bem toda a região, e nos trariam o carro vindo a corta-mato desde a Coutada. Não sei se serei capaz de dar a ideia da dimensão desta operação em termos de quilómetros. Mas imaginemos um triângulo com um dos vértices no Porto, outro na fronteira espanhola e outro em Leiria, sem povoações, sem caminhos, a não ser os que os que o rodado do carro vai fazendo. Voltando trás, após a cerimónia do hastear da Bandeira, iniciamos a primeira parte do regresso, até à sanzala já referida. Estava deserta, mas as galinhas continuavam debicando pelo chão do terreiro que estava arrumado e limpo. Devia ter sido abandonada à nossa aproximação, porque a população não sabia nunca o que fazer. Vinha a tropa Portuguesa e acusava-os de ser da Unita, vinha esta e punia-os por apoiarem os portugueses... Por isso era melhor a ausência do corpo do que a presença de espírito. Esperámos pelo jeep que só chegaria no dia seguinte, conforme o combinado. Dormimos portanto ali, mas era preciso montar sentinelas, duas por quarto, e para que estes fossem de apenas uma hora, em vez das duas habituais. Todos, a começar no Capitão e a acabar nos jornalistas fizemos a nossa obrigação. Se bem me lembro, esperávamos os nossos amigos depois da uma da tarde, visto que eles teriam de fazer mais de trezentos quilómetros desde a Coutada, e assim poderiam percorrê-los de dia. No dia seguinte, pouco depois da primeira hora, vimos, muito ao longe na planície, o nosso carro a aproximar-se. Concluímos então a viagem até ao Rivungo. Era suposto regressar a Serpa Pinto e relatar ao Governador Sousa Machado o decorrer da nossa missão. Mas estava programada uma missão de patrulha no Rio Cuando que, como já disse, faz fronteira com a Zâmbia. Essa operação seria feita a bordo de uma daquelas barcaças que as tropas aliadas usaram para desembarcar nas praias da Normandia, baixando painel da proa, mas que naquela tinha sido soldado quando a Marinha a trouxera para ali, por terra, cortada em secções transportáveis. Claro que não desperdiçamos a ocasião de fazer mais uma reportagem. Como não se podia deixar a vila desprotegida, e como a nossa missão seria apenas de patrulha e observação, optou o Capitão por fazer embarcar apenas o sargento, o furriel e cinco ou seis fuzileiros e os dois repórteres. Subimos o rio para fiscalizar algumas ilhas do lado de cá da Fronteira. Havia já algum tempo que navegávamos quando se notou movimento em terra. Encostámos à margem, e os Fuzileiros correram na direcção onde haviam avistado movimento. Quem lá estivera fugira, mas os militares perseguiram-nos com tal velocidade, que nem eu nem o fotógrafo, nem o Capitão os conseguimos acompanhar. Subitamente o Capitão fica muito preocupado e aponta para o chão. E que vejo eu? Rodado de carros. Mas carro numa ilha? Não. É que estávamos em terra firme, tínhamos entrado inadvertidamente na Zâmbia. Coisa gravíssima porque, para além do que nos viesse a acontecer - e boa coisa mão seria - haveria um grave conflito Internacional. Ali esperámos pelos outros, que continuavam a fazer fogo que continuou por mais algum tempo até que os homens regressaram. Traziam cartões da Unita, dois, salvo erro, e uns amuletos. Mas, mais atrás, dois homens transportavam o corpo de um camarada.
Tinha sido atingido na cabeça, e não sobreviveu. Foi um duro golpe para todos nós. Era preciso regressar a bordo o mais rapidamente possível. Teriamos de percorrer duas ou três centenas de metros, com o corpo do Fuzileiro às costas. Este rapaz, conhecido entre os camaradas por "Sabóia", nome da sua terra natal, era um dos Fuzos que eu conhecera meses antes no Zaire. Só restavam agora quatro fuzileiros, visto que dois tinham ficado a bordo por segurança. Então tomou-se única solução possível.Um dos civis tinha de auxiliar no transporte do corpo. O Raul Moreira estava naturalmente excluído, tinha uma problema numa perna e coxeava muito. Coube-me a mim e a um dos militares essa difícil e dolorosa missão, deixando livre outro homem para fazer a nossa protecção até alcançar a barcaça. Esta protecção, foi assegurada apenas por cinco armas: O Capitão, o sargento, o furriel e dois fuzileiros. Não vou descrever a consternação a bordo e depois no Rivungo. No dia seguinte veio um avião com um caixão de chumbo e levou o pobre Sabóia. O tempo que o CITA, Centro de Informação e Turismo, me concedera, esgotou –se, e tive de regressar a Luanda deixando os meus companheiros continuarem os trabalhos sozinhos. A final, tínhamos vindo ao Rivungo para cobrir uma cerimónia militar, afastada quase duzentos quilómetros da base, numa fronteira hostil, tendo pernoitado numa sanzala abandonada, e nada de grave tinha acontecido. Agora, numa breve patrulha, mesmo à porta de casa, e surgiu a tragédia que roubou a vida a um jovem. "Malhas que o Destino tece"...

sexta-feira, agosto 19, 2005

O elefante repartido

O jornalista Emílio Filipe, o fotógrafo Raul Moreira e eu andámos cerca de dois meses num Land-Rover pela Região do Cuando Cubango colhendo material sobre variados aspectos daquela zona; etnográficos, paisagísticos, cinegéticos, etc.. Muitas vezes dormíamos mesmo no carro ou montávamos tenda, Fomos mesmo integrados numa operação militar à Região do Luíana (disso falarei mais tarde). Na ocasião estávamos aboletados numa Coutada de caça e já tínhamos feito vários contactos com uma tríbu de "Buchímanes" de que falarei noutra ocasião. Depois de termos conseguido filmar em boas condições antílopes, avestruzes, búfalos e mesmo um rinoceronte, não tínhamos visto elefantes em condições filmáveis. Entretanto chegaram dois turistas americanos vindos directamente de avião da África do Sul, (nem passavam por Luanda). Também procuravam elefantes dos quais só queriam levar uma pata, para cada um e uns bocados de pele para fazer carteiras. Também tiveram dificuldades. Mesmo uma vez em que estivemos mais perto, como junto deles estava um rinoceronte – que ouve muito melhor que o elefante – este fugiu e os elefantes seguiram-lhes o exemplo. Numa madrugada em que não seguimos com os americanos fomos dar com uma "libata" de "ganguelas" - povo daquela região – que estava a fabricar uma espécie de cerveja de "massambala" uma gramínia muito vulgar. É curioso que esta "cerveja" chama-se "makau" (cheirava mesmo a cerveja e foi isso que nos chamou a atenção) Pedimos ao Sóba, que ali é também o feiticeiro, que nos deixasse filmar aquela operação, ao que ele não se opôs. Posto isto pedimos que fizesse um feitiço junto do "Pau Votivo" pois eles não têm imagens, bonecos ou fetiches. Diz ele: "vou fazer feitiço prá aparecer "arefante". Juntou algumas mulheres em volta do "pau votivo", pintou-lhes as caras com cinza e uma pasta branca, fez muitos gestos "cabalísticos", fez umas rezas e foi tudo; aliás bastante breve. Era ainda bastante cedo e continuamos na nossa busca, e já da parte da tarde fomos encontrar os caçadores americanos e pouco depois, finalmente, ,um elefante que eles mataram. Ao regressar à Coutada passamos pela "libata" e dissemos ao Soba que na madrugada seguinte passaríamos por ali para os levar até junto do elefante para eles o esquartejar e dividir. Aqui um à parte; Como deve ter subido o prestígio daquele "kimbanda" junto do seu povo! Fazer o feitiço e, no mesmo dia aparecer elefante, é obra! Pelo menos o alarido das mulheres dava-lhe nota alta., Assim, no dia seguinte carregamos o jeep com uma multidão de homens com catanas e facas e mulheres com bacias e alguidares. E lá chegamos ao elefante. Enquanto os homens abriam o paquiderme (tudo isto nós, o Raul e eu íamos fotografando e filmando enquanto o Emílio tirava notas). As mulheres faziam um estendal para posteriormente porem a carne a secar. Omito os pormenores do desmontar do bicho que era bastante repugnante à vista e ao olfato. Quero realçar a forma como foi feita a distribuição da carne pelas mulheres; O Sóba separava uns pedaços de carne de diferentes partes do elefante, chamava uma mulher e entregava-lhe a porção que entendia; certamente segundo o número de pessoas que ela teria a seu cargo e nenhuma disse: "Aquela teve mais do que eu". ( havia de ser cá!!!) Disciplinadamente ia estender no varal a parte que lhe coubera.. Entretanto alguns homens punham às costas porções de carne a afastavam-se até desaparecerem da nossa vista. Perguntamos para onde iam e foi-nos dito que iam levar a carne a outros povos vizinhos que noutras ocasiões tinham feito o mesmo com eles. Mas o mais estranho veio a seguir. Com o maior espanto vejo aproximarem-se dois buchimanes com dois paus às costas que sem dizerem nada se metem também dentro do elefante e vá de cortar carne. Sabendo como era grande o ódio entre os Bantus e os Mucancalas (o mesmo que buchimane) imaginamos logo ali um massacre. Nada disso; os homens enfiaram a carne que puderam nos paus que traziam, puseram-nos atravessados nos ombros e, sem dizer água vai, lá se foram por ponde vieram. A explicação que nos foi dada pelo próprio Sóba foi que se toda a gente tem fome, quando se apanha um elefante ou outro animal grande toda a gente tem direito a levar aquilo que for capaz de carregar. Mas não sejamos românticos e não vejamos nisto um simples acto de solidariedade. O instinto da sobrevivência, fala aqui muito alto: "hoje por ti amanhã por mim", mas não deixemos de pensar quão diferentemente se passam as coisas neste nosso mundo civilizado. Ou mesmo naquela mesma África mas mais para o Norte, Luanda, Uíje, Malange, etc onde o contacto dos povos nativos com os europeus é mais estreito e antigo. Já se sabe que mais de pressa se absorvem os maus exemplos do que os bons. De qualquer forma, o que me deixou marca foi realmente o episódio solidário e humano que presenciei do "ELEFANTE REPARTIDO".

quarta-feira, agosto 17, 2005

Como tantos

outros estudantes, a meio do Secundário trocou os estudos por um emprego. Trabalho indiferenciado, pois o Secundário, mesmo que completo, é um curso "generalista" que não aponta para algo defenido, produzindo, na melhor das hipóteses, funcionários públicos, professores primários que irão encaminhando os seus alunos que não ficarem pelo caminho, para um destino igual ao seu. Resolveu pois o estudante em questão voltar a estudar, agora como trabalhador/estudante com todo o sacrifício e esforço a que esta condição obriga. Mas esta dupla actividade não oferece nada de seguro e estável, e leva muito tempo até se conseguir uma licenciatura. Mas obtida esta, e já rondando os trinta anos, é "só" percorrer a "Via Sacra" da busca de colocação ou emprego consentâneo. Todos sabemos o quanto é difícil consegui-lo. Daí o recurso à busca de um trabalho indiferenciado que muitas vezes lhe é recusado até por empregadores que não vêem com bons olhos um Sr. Dr. ao balcão da sua loja, ou à secretária do seu escritário, apesar dos baixíssimos salários que viriam a pagar a um empregado sem qualificação. Outros haverá, que não lhes podendo garantir um vencimento compatível com a sua formação académica, não os admitem nas suas Empresas. Por sua vez o Estado, através das suas Faculdades, e o Ensino particular, vão "dando à Luz" centenas e centenas de "quase nados mortos", enquanto o País se debate com a falta de gente qualificada que o arranque desta letargia que nos arrasta desde sempre na cauda da Europa. Um Lienciado em Psicologia cuja Tese foi aprovada com 20/20 valores parece que deveria ter admissão imediata na Saúde, na Educação, no Desporto, Forças Armadas, Justiça etc, não teve outro remédio senão emigrar para o Reino Unido onde finalmente conseguiu trabalho que, embora muito abaixo da sua formação, lhe permite um nível de vida que a sua própria terra lhe nega. Enfim: um "Ucraniano" made in Portugal...

domingo, agosto 07, 2005

O PÁSSARO

Princípio dos anos setenta, do Século passado.
A Telecine África, para quem eu trabalhava, recebeu de uma Agência de Publicidade a execução de um filme sobre a actividade de uma Empresa especialisada em pulverisação de culturas por meios aéreos. Na altura os trabalhos estavam a ser executados no Planalto Central, mais precisamenete no Huambo - Nova Lisboa. Para lá partimos, o Luis Miranda, realisador e eu operador, manhã cedo, a bordo de um bimotor Cessna pilotado pelo Comandante Viegas Ferreira de Almeida com quem eu já tinha voado imensas vezes, e até vivido uma aventura memorável, da qual falarei noutra ocasião. Longe de pensar que estavamos a caminho de outra aventura, esta bem mais perigosa que as anteriores, descolamos de Luanda mal clareou o dia e eu fiz questão que o Luis ocupasse o lugar ao lado do piloto, que tinha resolvido alterar a rota normal e seguir ao longo da Costa, para mostrar ao Luis Miranda a Reserva de Caça de Quissama, que começa na margem direita do rio Quanza, a escassos setenta quilómetros de Luanda, e se estende quase até Porto Amboim, cerca de cento e oitenta mais a sul. Porque já tinha visto a Reserva enúmeras vezes do Ar e no chão, e tendo deixado para o Luis o lugar que eu julgava ser o melhor, encostei-me no lugar de trás e preparei-me para dormir, coisa em mim habitual nos aviões. Lá fomos, em vôo rasante, proibido, pois não se deve assustar as manadas de antílopes, pacaças, zebras, elefantes, etc. Mas como seria uma só passagem não era grave. Acordei da minha sonolência quando já tinhamos deixado a Quissama, e inclinei-me sobre o assento do Piloto, com um braço apoiado nas costas da cadeira, e o queixo apoiado nele. Vi que sobrevoavamos uma praia, mas tão baixo que deu para ver um homem apoiado em muletas sobre a areia na praia. Ia chamar a atenção para isso, quando oiço um estrondo enorme, apanho com qualquer coisa no braço e na cara, que me tira os óculos, sou atirado violentamente para trás por um brusco movimento do avião, e na mesma fracção de segundo em que tudo isto aconteceu, o avião estabelisou. Mas ficou uma ventania enorme e o barulho ensurdecedor dos motores. Perguntei: " O que foi isto?"- Foi um pássaro, disse o comandante. Então reparei que estava cheio de sangue -que não era meu- de excrementos e vísceras que felizmente também não eram minhas. Ao meu lado estava o cadáver estripado de um pássaro que tinha acabado de abalroar o avião, partido o para-brisas (felizmente) do lado dieito. Se tivesse sido do lado esquerdo, o lado do piloto, provavelmente nunca escreveria esta estória, (nem nenhuma outra). Quando o Luis olhou para trás, fiquei horrorisado. A cara empastada em sangue, uma brecha na cabeça e outra num lábio, e a camisa cheia de sangue. Mas olhava para mim e, ao que me parecia, ria-se... Então eu disse.lhe. "Espera que vou fazer-te uma fotografia" pego na câmara e para mudar a objectiva, desmontei-a e fugiu-me um pequeno filtro de gelatina que, com aquela ventania, voou, lá para a frente, felizmente o único espaço limpo do avião.
O Luis baixou-se para o apanhar e teve de limpar o sangue que escorria dos dedos para não o sujar. "Olha para mim", disse eu e ele voltou-se para trás, e riu-se. A fotografia está um bocado desfocada, devido à pouca distância, mas garanto que aquele não é um esgar, é mesmo um impossível sorriso. A paciência do Comandante Viegas, para nos aturar, foi de Santo. Só então pôs os auscultadores, que o barulho era enorme, e pediu para Novo Redondo um transporte do Campo para a Cidade. O nosso destino, à partida, era o Huambo, a cerca de trezentos quilómetros, para Leste. Alterando a rota, apontámos a Novo Redondo, o ponto mais perto onde poderiamos aterrar. Chegamos e já se aproximava um carro para nos levar. Mas o Comandante com o aparelho já parado, deixou os motores a trabalhar e comunicou com Luanda, pedindo que lhe trouxecem outro parabrisas...
Dali rumamos ao Hospital, eu que não tinha praticamente nada, um braço inchado, um arranhão no sobreolho, fui a uma loja comprar uma camisa para o Luis, a que ele trazia, nem valia a pena lavar. Foi para o lixo. Entretanto fiquei à espera no Hospital que tratassem do meu colega, o que levou quase duas horas. Passeando no corredor, reparei, depois de muito tempo passado, que tinha a camisa quase fora das calças. Vou arranjar-me e... encontro dentro da camisa um "siroco", respiradoro em alumínio, que tinha sido arrancado do cokpit junto com o meio parabrisas do lado direito. Foi só aí que eu me apercebi do abalo que sofrera. Entretanto o Luis acabou de ser tratado ao ferimeto da cabeça, felizmenmte ligeiro, um golpe feio num lábio, braços e peito feridos pelo vidro que lhe tinha batido em cheio. Dizia-me ele depois: -Obrigadinho pela gentileza da cedência do "lugar do morto". A seguir fomos para o Hotel que já era nosso conhecido. Bem, foi uma agitação e ao mesmo tempo um grande espanto, porque, infelizmente, quem sofre um desastre de avião, não vai tranquilamente almoçar ao Hotel. Entretanto víramos numa vitrine uma mola para prender papéis. Era em prata e representava muito a propósito, uma cabeça de pato com olhos de esmeralda. Quase dava para acreditar que era a mesma que o pássaro não tinha conseguido levar com ele na última viagem. Iamos morrendo a rir, e como o Comandante Viegas não a tinha visto, mandámos embalar e ao almoço, veio um empregado entregar-lhe o bonito embrulho. Ficou muito comovido com a prenda riu-se da coincidência. Foi um bom momento de alegria. À tarde chegou um avião trazendo dois técnicos e o meio parabrisas que fixaram no lugar com... fita adesiva, o que não me admirou, (eu próprio já tinha remendado um pneu com adesivo clínico). Acabada a obra, que não ficou muito bonita, conforme se pode ver na fotografia, mas era segura. Estava chegada a altura de regressar a Luanda, e o Comandante queria que nós viajassemos no outro avião. Isso para nós era impensável e, jocosamente usamos um argumento estatístico : "É muitíssimo remota a hipótese de um mesmo avião, com os mesmos tripulantes, os mesmos passageiros, e na mesma rota, tenha dois acidentes no mesmo dia. E assim voltamos a Luanda, e dias depois retomamos a viagem mas, desta vez directos a Nova Lisboa, onde fizemos um bom filme de publicidade.

Eu e o cmdt. Viegas enquanto arranjavam o vidro do avião.