Roxa xenaider

segunda-feira, julho 25, 2005

a Sª de Fátima

Este título pode parecer estranho, mas virá a justificar-se mais à frente. Filmávamos o VENDAVAL MARAVILHOSO, com a Amália, o Barreto Poeira e um actor brasileiro, amador, chamado Paulo Maurício que interpretava o papel de Castro Alves. O filme era sobre o poeta brasileiro do Século 19. Os trabalhos não estavam a correr da melhor forma, por razões que seria agora fastidioso relatar, e o ambiente era de cortar à faca. Fomos fazer os exteriores de uma zona de floresta para o Jardim Botânico da Faculdade de Ciências, e a cena era aquela em que o Castro Alves dá um tiro no pé, e disso vem a morrer, se não estou enganado. Era pois uma cena altamente dramática. Faziamos noite americana, o que quer dizer que filmávamos de dia com efeito de noite, colocando em frente da objectiva um filtro vermelho, um filtro polarisador, e ainda se filmava em subexposição. Esta explicação é necessária para que se perceba que se via muito mal durante a filmagem. Por isso eu, o operador, andava todo o dia com uns óculos de soldador que só tirava quando metia a cabeça debaixo do pano preto. Fez-se pois um plano muito dramático, com o Poeta a saír coxeando do meio do arvoredo. Por efeito dos filtros, as folhas verdes das árvores ficam muito escuras e o céu azul fica negro. Acabadas as filmagens do dia, regressamos ao Estúdio. Só na tarde do dia seguinte fomos ver em projecção o trabalho da véspera. E quando o Poeta sai do meio daquela escuridão, o que é que vemos? A uma certa distância, por detrás do personagem, e num nível um pouco mais elevado, entre as árvores, uma mulher vestida de branco embalando nos braços uma criança. Ficámos todos gelados – principalmente eu – que devia ter visto e não vi. Ouve-se um berro: "Ó senhor João Silva (o Leitão de Barros, que sempre me tratou por tu desde os meus tempos de claquete-boy no Bocage, quando se zangava tratava-me por Senhor) o que vem a ser isto? Como foi isto possível?" - Não sei responder, disse eu, mas naquele sítio só se for a "Srª de Fátima". Os meus camaradas ainda tentaram avançar com um "nós também não vimos", mas eu atalhei logo que aquilo era só comigo. Eu tinha com o Leitão de Barros uma relação de parada e resposta, nunca me deixei intimidar por ele e procurei sempre não dar o flanco. Nunca tinha sido censurado no meu trabalho, aquele era o terceiro filme que fazia com ele e custava-me muito ser apanhado numa falha tão grande. Certo é que a coisa estava ali e não havia voltas a dar-lhe. Mas eu continuava a não acreditar na hipótese da Srª de Fátima. Num intervalo de trabalho, fui ao Laboratório e pedi o negativo daquele plano. Depois, no Laboratório fotográfico, fiz uma ampliação 3ox4o e vi que no meio da folhagem havia um pedaço do céu que, se fosse azul deveria ficar negro por efeito dos filtros, estava branco porque era uma nuvem, que os filtros ainda tornavam mais branca. O caprichoso desenho das ramagens, mais o efeito do vento sobre elas, criavam a ilusão de uma pessoa sentada embalando uma criança. Fui ao "plateau" mostrar a foto ao Realizador, provando que afinal não havia erro meu, pois na paisagem natural que nós observávamos a olho nu, não havia lugar a ilusão. Acresce que o local onde filmáramos era o ponto mais alto do Jardim e o terreno começava a descer para o lado do Parque Mayer. A tal senhora a embalar só poderia estar no Céu, daí eu ter pensado na Srª de Fátima. Mas desta estava ela inocente... como aliás eu também. Mas o efeito era tão real que o "plano" não serviu, e teve de se repetir.

O "Tito" Gouveia

Abílio Gouveia era um extraordinário guia do Deserto. Filho de um outro guia, o Manuel "Tito" Gouveia, que trabalhou para a DTA - as antigas Linhas Aéreas de Angola. Este homem foi o mecânico do voo Lisboa-Macau com Brito Pais e Sarmento de Beires, nos ano 20 do século passado. Mas voltando ao Abílio, a quem muitos também chamavam Tito, quero relatar a captura de uma zebra. O Abílio tinha recebido a incumbência de colher amostras de sangue de zebra para estudos laboratoriais e eu aproveitei o convite que ele me fez para filmar uns "bons bonecos" para o jornal cinematográfico das Actualidades de Angola que realizei durante alguns anos. Largamos manhã cedo para o Deserto com um Jeep Land-Rover e um outro Willys e com alguns homens para auxiliar na captura. Percorremos várias "Chanas" (zonas de planície entre morros) até encontrar uma suficientemente ampla e onde andasse uma manada que incluísse alguns animais ainda jovens. Depois de algum tempo, finalmente encontrámos aquilo que o Abílio pretendia. Nessa altura eu passei para o jeep mais pequeno para acompanhar o trabalho do Abílio e dos ajudantes. Começaram por perseguir a manada impedindo-a de fugir para os morros. Conseguido isso, meteu o carro no meio da manada até separar uma zebra nova mas já completamente formada –digamos, uma "pré-adulta"– nesse momento eu comecei a filmar acompanhando em paralelo aí a uns vinte metros de distância. O Abílio conduzia com extraordinária habilidade de forma a anular os desvios que o bicho constantemente fazia. Os ajudantes, uns quatro, seguiam em cima do carro e um deles levava uma vara com uma corda e um laço na ponta. Os outros seguravam a ponta da corda. Assim que o laço foi passado no pescoço da zebra o jeep parou repentinamente e os homens saltaram para o chão, agarraram-se ao animal e imobilizaram-no. Tudo fácil... e rápido. Eu tinha metido um carregador cheio na câmara, 60 metros, ou seja dois minutos e ainda sobraram alguns metros. Depois foi preciso colher algum sangue do pescoço e tirar umas quantas carraças para dentro de um frasco, e soltar novamente a zebra. Não antes de lhe terem fixado um selo numa orelha. Encetamos o caminho de regresso mas um dos Jeeps avariou-se e o motorista passou para o nosso Land-Rover e deixou o outro para o ir buscar noutro dia. Entretanto fez-se noite, e como não há duas sem três, também a luz do Land-Rover se apagou. Ficámos só com os pisca-pisca. Assim fomos andando com o Abílio a falar naquele jeito dele muito pausado, contando histórias de outras aventuras semelhantes. A noite estava escura como breu e nós lá íamos andando em marcha lenta pelo deserto fora e eu – apesar da grande confiança que tinha no meu Amigo – não deixava de pensar que de noite todos os gatos são pardos e todos os caminhos são iguais. E ali não havia caminhos, era só deserto. Mas como ele ia calmo, acabei também por deixar correr até que... vimos lá ao longe, mesmo na nossa frente, uma luz fraca e tremeluzente. "O que é aquilo?" pergunto eu. E com a mesma voz lenta e calma com que sempre falava, diz o Abílio "É a Fazenda do Von... qualquer coisa", o alemão onde tínhamos estado de manhã, e onde fomos dormir naquela noite. Claro que o Abílio nunca esteve perdido, nunca andou à procura do caminho. Ele esteve sempre sabendo o rumo que seguia, certo e determinado. Mas eu nunca percebi como, depois de andarmos toda a manhã às voltas ao sabor dos caprichos das zebras, ele sabia de onde iniciava o regresso e a direcção a seguir através da escuridão. Ele também não me soube explicar. Foi das coisas mais fascinantes por que passei em Angola.

ainda o "Vendaval maravilhoso"


No filme de Leitão de Barros, de 1948, houve várias situações inesperadas, chistosas umas, outras nem tanto. Para interpretar as figuras dos Senadores que teriam de vestir fraques, casacas e etc, com à vontade, e encarnar aquelas solenes figuras, contrataram-se actores de Teatro, não só de Lisboa como de teatros itinerantes. No fundo, era uma "figuração especial" que poderia mesmo ter alguma intervenção e dizer algum frases. Entre os oriundos dos teatros de Província vinha um actor com uma boa figura, e que o realisador escolheu para um desses fugazes momentos de Glória. Chamava-se Valério de Rajanto. Tinha um gesticular pomposo e falava, em cena ou fora dela, com uma voz "empostada" que já nem Alves da Cunha usava. Começaram os ensaios do plano a filmar e, à voz de Acção, ele, como lhe era já natural, debitou a sua fala. Leitão de Barros emendou - "Ó senhor Valério de Rajanto, eu prefiro que diga a frase de outra maneira, menos autoritária". E o actor para ele: "Ó José, basta dizeres como queres que eu diga, e eu digo". E o Leitão de Barros, com uma suspeita paciência que lhe não conheciamos, manda repetir o ensaio. E o actor repetiu a frase exactamente como no ensaio anterior. Então o Leitão de Barros diz, acentuando bem o nome: "Ó senhor Valério de Rajanto, não era bem assim, era menos....( )." e o outro "Ó José, podes estar à vontade, se queres de outra maneira, não tens mais do que dizer. Há mil maneiras de dizer uma frase, e eu sei-as todas". E assim continuou o duelo entre o "Ò Senhor Valério de Rajanto", e o "Ó José", que devia pôr o figado verde ao realisador. E aquilo repetiu-se um ror de vezes e a frase saía sempre igual à primeira. Já estavamos todos com pena do homem, sujeito àquela situação ridícula perante a equipa e os outros actores e figurantes, quando finalmente Leitão de Barros põe uma expressão de derrota, faz uma pausa dramática e diz numa voz lamentosa: "Bem... vamos filmar mesmo assim". Não sei como terá ficado por dentro o senhor Valério de Rajanto, mas ninguém gostou de ver.

sábado, julho 23, 2005

nós o osso e o cão

Creio já ter contado que no Presídio de Angra do Heroímo havia um edifício que comportava quatro casernas em dois pisos, e como nós tinhamos conseguido estabelecer comunicação clandestina entre três delas. Mas ao lado existia um outro conjunto de duas casernas em dois pisos. Não podendo comunicar directamente, recorremos a outros meios mais imaginativos. Num osso de boi que encontrámos no terraço, e que tinha um interior espaçoso, tapámos uma das extremidades com gêsso, metiamos lá dentro as mensagens, colmatavamos a abertura com terra amassada e deixavamos depois o "correio" num sítio discreto durante o recreio onde outros camaradas o apanhavam, levavam, liam e respondiam, deixando o osso no mesmo local. Tudo isto levava pelo menos três ou quatro dias. Eram os nossos "mails" da altura. Um dia fatídico para a nossa tradicional amizade, um cão que apareceu por lá, foi roer aquele osso sem carne para os pés de um guarda republicano, e aí acabou o nosso "correio". Porém foi por pouco tempo. Apanhámos uma pedra coberta de líquenes e o Diniz que era canteiro de profissão, teve artes de lhe fazer um furo de suficiênte diâmetro para recolher as nossas mensagens. Assim foi reposta a "ilegalidade" anterior. Mas havia ainda necessidade de comunicar com o exterior, o que, segundo julgo, era feito através de um tal sargento Videira(?), também preso, mas numa casa afastada, e a quem tinha sido concedida liberdade de circulação na Fortaleza. Mais longe das casernas existia um balneário antigo, em pedra mármore, mal tratado e com os vidros das janelas partidos, por onde entrava um vento frio para juntar ao frio da água. Este balneário situava-se no alto da falésia, frente ao Mar. Nas casernas tomavamos banho de "púcaro" que despejavamos na cabeça uns dos outros. Por isso insistimos, e conseguimos, que nos levassem ao balneário, em pequenos grupos acompanhados por dois guardas. Um deles ficava do lado de fora da porta e outro passeava-se frente às janelas. Nós faziamos sempre uma grande brincadeira, para encobrir a actividade do Virgílio Ferreira, que levantava o ralo do chuveiro e de lá tirava um tubo de vidro de Aspirina, e colocava outro. Este "correio" era irregular mas funcionava. Aliás, nós não tinhamos pressa... infelizmente. Estes pequenos truques, além de facilitarem a comunicação entre nós, davam a alegria de podermos troçar com os guardas. A propósito disso, lembrei-me agora de uma brincadeira, sem utilidade prática, a não ser a de ridicularisar os carcereiros. Durante o recreio, estava um guarda escondido num guarita de um dos torreões, para nos vigiar e descobrir como é que nós comunicavamos. Fomos para outro torreão (onde, 65 anos depois, voltei fiz uma fotografia). e reunimo-nos com um ar conspirativo e um de nós, "encoberto" pelos outros, baixava-se. Voltamos para a caserna até um pouco mais depressa que o costume e acercamo-nos das janelas a ponto de vermos um grupo de guardas subir a escada, chegar ao torreão, e um deles, certamente o espião heroi se curvava, e apanhava qualquer coisa meio escondida sob os bancos de pedra. Enquanto aquela meia dúzia de exultantes cabeças se unem, curvadas, o "herói" no meio do grupo deve estar prestes a mostrar o seu troféu que, pensará ele, lhe trará um louvor. De súbito o círculo de curiosos desfaz-se de um salto. Enquanto uns se riem a perder, o espião frustrado deve ter um ar furioso perante o "troféu" que tem na mão, e que a distância não nos permitiu apreciar devidamente. Era uma caixa de fósforos de onde surgiu repentinamente, impulsionado por um elástico, um vigoroso e colorido pénis, êsse sim, digno de louvor. Para nós, deu-nos para rir por largos dias.


........................ano 2000..................................1934 (preso)

O sargento bera

Estamos no início dos anos 30.
Nessa época chamavam-se "sargentos beras" aos soldados que se mascaravam de sargento para, principalmente, arranjarem namoros junto das sopeiras. Pois ficou célebre nessa altura um "Sargento Bera". Foi preso mais do que uma vez e fugia sempre. O "modus faciendi" era o seguinte: Pesquisava na zona do Estoril residências de Oficiais do Exército, relacionava-se com as criadas para saber os costumes, e principalmente a altura das férias dos donos das casas. Senhor das informações, logo que as residências estavam vazias, apresentava-se fardado de sargento, acompanhado de dois ou três cúmplices com fardas de trabalho conduzindo uma carroça cinzenta – como as da tropa – e faziam a mudança dos móveis. Claro que a vizinhança não estranhava ver militares a mudarem a casa do Senhor Oficial. Depois de várias prisões e fugas, foi parar à Casa de Reclusão Militar da Trafaria onde tinha a cela 44, do lado direito da cela 43 onde na altura "residia" eu com dois outros camaradas. Eu era o nº 4761. Apesar de ser um presídio militar, esteve de Janeiro a Setembro de 1934 quase completamente ocupado por presos políticos participantes no Movimento de 18 de Janeiro. Embora fosse proibido o contacto, e principalmente as conversas entre presos, quando se abriam as celas para irmos despejar os penicos, raramente se abria só uma de cada vez, pois isso iria demorar muito tempo. Assim tive ocasião de trocar algumas palavras com o tal Sargento Bera. Ele tinha um rosto e um olhar um pouco "porcino", salvo seja, mesmo um tanto alvar, o que, a avaliar pelos seus feitos, era enganador. Os postigos por onde nos davam os alimentos abriam na vertical, de forma que quando abertos, formavam uma pequena prateleira. Era fácil abri-los por dentro, deitar a cabeça de fora e ver parcialmente a cabeça do parceiro do lado. Desta forma falámos algumas vezes, e de uma delas ele pediu-me emprestado o fogareiro de petróleo. Quando o devolveu, a cabeça vinha muito queimada, quase imprestável; mas está bem, não me zanguei mas fiquei com a pulga atrás da orelha. Dias depois pediu-me através de um dos faxinas – presos militares – um casaco emprestado. Como ele tinha fardamento militar, fiquei logo a pensar que ali ia haver grossa coisa. Mas lá emprestei o casaco. Algumas noites depois, já madrugada, ouve-se um grande reboliço, correrias, gritos e abrir e fechar de celas. Os guardas entraram na nossa, viram-nos aos três, fecharam a porta e foram-se embora. O que tinha acontecido? Segundo o que nos contou o "cabo das chaves", o Sargento Bera tinha conseguido forjar uma chave a partir de bocados muito ferrugentos da porta do nicho que na parede das celas servia para guardar o caneco dos dejectos. Essa chave abria um maior número de celas do que as autênticas. O plano de fuga era o seguinte: A capela estava em obras e ficava do lado fronteiro à zona prisional, composta por uma nave semelhante às da Penitenciária de Lisboa, com celas ao nível do solo, e numa varanda em ferro de ambos os lados. As celas 43 e 44 ficavam na varanda, perto da parede do fundo, que era totalmente coberta por um vitral com motivos religiosos. Neste havia uma porta – que se fechava e abria pelo lado de lá. Seguia-se um corredor que percorria todo o lado direito do edifício, voltava à esquerda e terminava na Capela. Os presos militares que trabalhavam nas obras andavam à vontade durante o dia, e à noite recolhiam às celas. Seguindo o plano do Sargento Bera, juntaram na Capela umas pranchas que a partir duma janela lateral venceria a distância até ao muro exterior, por cima de uma rua que rodeava o edifício dos Serviços Administrativos. Ao mesmo tempo abririam o fecho da porta do Vitral e deixá-la–iam apenas encostada. Na noite combinada, o "Sargento", metendo o braço pelo postigo abriu a porta, saiu e foi abrir as dos cúmplices. Seguiu-se o caminho até à Capela. Até aqui tudo bem. Só que a prancha mal chegava ao muro, ficava apoiada só por uma beirinha, e logo que um homem chegou a meio, a prancha fez barriga, soltou-se do muro e caiu cá em baixo com homem atrás. Os que estavam na Capela trataram de correr de novo para as celas, incluindo o Sargento Bera. E assim se gorou a fuga. Dias depois, andava um sargento (este autêntico) com um casaco na mão a perguntar "Quem é que perdeu este casaco?" Nunca apareceu o dono!

quarta-feira, julho 20, 2005

Ducarsky, o "Russo"

A Serra da Chela é um deslumbramento. Ali, as chuvas na época própria, são abundantes e frequentes. A estrada desce em laços até ao Deserto de Moçâmedes. Em penoso contraste, pois no Deserto não chove durante anos. Subi e desci aquela Serra dezenas de vezes, e numa dessas descidas, sob uma chuva que aqui nem se imagina, parei o carro. Dali já se via sopé da serra e o começo do deserto. Pela estrada de terra batida, lá em baixo, vinha uma carrinha em grande velocidade levantando uma enorme núvem de poeira. Quase de repente, a poeira pára e a carrinha entra na chuva da montanha. Foi como se tivesse atravessado uma cortina. E era isso que acontecia. Os ventos sopram sempre do Mar e não deixam que a chuva avance para Ocidente, sobre o Deserto. Os mil e novecentos metros de altura da Serra tambem não deixam passar o vento. Logo que foi possível reiniciei o caminho, e foi na Umbia, mesmo ao fundo da Serra, que conheci o Alexandre Ducarsky. Ele dirigia uma Fábrica de Charcutaria, e eu, passando por ali muitas vezes por ano, sempre parava para dois dedos de conversa. Anos mais tarde rumou a Luanda onde abriu um Restaurante no Largo da Mutamba, junto à Fazenda. A "Charcuterie Francesa". Mas não era do Alex nem da Charcuterie que eu queria falar...
Conheci os dois filhos do Alex ainda crianças. Depois perdi-os de vista. Mas no final dos anos sessenta fiz uma reportagem a bordo de uma Fragata que levava a bordo o Ministro da Marinha. O exercício era subir o rio Zaire durante a noite para testar as boias limite da fronteira com a República do Zaire que, em parte do percurso, passa pelo meio do rio. Como não tinha onde dormir, passei a noite embrulhado numa manta na cabine da roda do leme. Foi uma experiência curiosa, apesar de não se ver um palmo diante do nariz. De tempos a tempos avistava-se uma bóia iluminada, e ouvia-se a voz do Oficial que dava rumos ao homem do leme, também chamado Coramastros. "Quatro graus a bombordo" ou "três graus a estibordo". O homem do leme repetia a ordem e depois de a executar, dizia "Está no caminho". Foi embalado por esta música que "dormi" toda a noite até fundearmos frente a Noqui, vila fronteiriça. Passo em branco as cerimónias militares e chego finalmente ao caso. Em Noqui um fuzileiro tinha caído, e segundo o médico de bordo, teria fracturado a bacia. Resolveram pois, embarcar o homem e trazê-lo para Luanda. Assim se fez, e largámos rumo a Sul onde chegariamos às dez horas da manhã seguinte, hora para que estavam marcadas as honras militares a prestar ao Ministro. Mas para cumprir o horário, o navio vinha em marcha lenta, pois se viesse em velocidade de cruzeiro, chegariamos de madrugada. O bordo de Honra é o de estibordo - se não me engano - estando reservado ao Ministro e seus acompanhantes. Estava eu encostado a uma porta de acesso a esse bordo, mas do lado de dentro, quando vi que o Ministro passeava na coberta acompanhado pelo seu Oficial às ordens, um sub-tenente muito novo. E foi este que puxou a conversa que cito de memória: "Coitado do rapaz, ao tempo que ele está assim, o sofrimento que deve sentir", e o Ministro concordava; "Claro, claro, coitado"... "e só poderá ser desembarcado depois das Honras militares". E mais uns minutos de conversa sempre apoiando as regras protocolares da Marinha. "Pois não seria correcto fundear na baía e ficar o Navio e o Senhor Ministro à espera!" E o Ministro sempre de acordo. Até que o sub-tenente, quando achou o "fruto maduro", atacou a fundo: "Se o navio ficasse a pairar fora da Baía e desembarcasse o homem, já poderiamos entrar à hora marcada". O Ministro concordou, e passados poucos minutos o navio aumentou a velocidade e chegámos a Luanda de madrugada onde estava uma lancha à espera do sinistrado. Ficámos então a pairar até às dez horas que foi quando entrámos gloriosamente na Baía de Luanda ao som das salvas do estilo. Tería o Almirante dito, pelo menos ao Comandante do Navio, de quem tinha sido a ideia? O moço, o tal sub-tenente, não disse nada, posso garantir, porque quando contei ao Pai, ele não sabia de nada. Era o filho mais velho do Ducarsky.

segunda-feira, julho 18, 2005

Os arquivos da Pide

Quando, na década de 90, abriram à consulta pública os Arquivos da PIDE/DGS à guarda da Torre do Tombo, apressei-me ir, logo no segundo dia após a abertura, solicitar a consulta do meu processo. Sem burocracias, depois de me pedirem os dados pessoais, prometeram avisar-me dentro de poucos dias quando poderia ver o processo. Chegado o dia, apresentaram-me não um, mas três processos com as desculpas de que ainda não tinham conseguido localisar o quarto. Em breve percebi o que se passava: eram processos de outros, em que eu era referido, mas que não poderia consultar sem autorisação dos respectivos titulares. Mas como seria isso possível se eram pessoas de outras regiões, de quem desconhia as moradas e, além disso, não via há sessenta anos? "Então o caso muda de figura, a cláusula de reserva prescreveu aos 50 anos; pode consultar os processos." Comecei lógicamente pelo meu, que me não trouxe grande novidade, a não ser a linguagem canhestra em que eram descritas as "investigações" que, aliás, o meu corpo nunca esquecerá, mais a dedução de culpa com a incontornável frase: Tendo tomado conhecimento da senha e contra-senha que foi comum a todos os processos. Depois fui ler os outros. Antes nunca o tivesse feito. Concluí que a "reserva" de cinquenta anos pecava por defeito. Ali estava eu, longêvo de oito décadas, a devassar as fraquezas, as cobardias, as faltas de dignidade, enfim o DESESPERO de quantos, condenados a vinte anos de degredo. Quando eles próprios teriam vinte anos à data da condenação. A esperança durante os primeiros anos era geral. Pude assistir e ouvir durante os dois anos que passei com os meus camaradas condenados a 10 e 20 anos de prisão, manifestarem as suas esperanças de Liberdade: "Isto está por pouco, o fascismo está podre". "O salazar não se aguenta contra um povo inteiro". "Eu se soubesse que tinha de passar aqui vinte anos, matava-me". Mas eu conheci quem tendo aos 18 anos sido condenado a 10 anos, cumpriu catorze. Como foi isto possível? Que "justiça" era aquela ministrada por Oficiais Superiores do Exército em uniforme de gala? Um preso de delito comum, desde que não cadastrado, sabia quando iniciava o cumprimento da pena, e o dia exacto em que seria libertado. O preso político não. Não havendo prisão perpétua nem pena de morte em Portugal, nem podendo instaurá-la por razões externas, optou-se pelos caminho tortuoso do cinismo e da beatice. As penas de prisão efectiva, com prisão no local do degredo, ditadas pelos "Juízes", eram acrescidas de: (ao tempo a que me refiro, anos 3o do Século passado) 20 contos de multa remiveis em dias de prisão, o que levaria anos a pagar. Depois, e uma vez expiada a pena de prisão, eram aplicadas as medidas de segurança que colocavam os presos à disposição da polícia política, que só lhes daria liberdade quando, e se entendesse. Eis instaurada a prisão perpétua. Um homem de 40 anos, condenado a 20, mais os acréscimos, não seria libertado antes dos 65. A média de vida naquela época, há setenta e cinco anos atrás, mais o desgaste físico e moral provocados pela carência de Liberdade, fariam com que muito provavelmente se morresse na prisão. E assim estava - pelo caminho da hipocrisia - instaurada a prisão perpétua. Dir-me-ão que isto é um exemplo extremo, porque o rapaz de 18 anos condenado a 10 e que cumpriu 14, "ainda" saiu com 32 anos, na força da vida . Eu tinha sido preso com ele, voltei a vê-lo catorze anos depois. Sei do que falo. E a pena de morte, essa não foi decretada. Pois não, mas as piedosas criaturas que hipocritamente "visitavam" as igrejas à hora da missa, rezavam o terço e até comungavam, tiveram a ideia e mandaram fazer o Campo de Concentração do Tarrafal onde internaram e fizeram morrer dezenas de presos políticos. Eu não estive no Tarrafal, mas fui companheiro de prisão de alguns que de lá só voltaram mortos. E o Campo era mesmo para isso; um torcionário de nome Seixas, que fora guarda costas do Presidente Carmona, foi investido das funções de Director do Tarrafal, e dizia: "Vocês vieram para morrer aqui". Levado por recordações que guardo no coração, desviei-me do meu objectivo que era a leitura dos processos. Antes nunca o tivesse feito! Nos processos eu era referido várias vezes porque nos interrogatórios, os presos, no meio daquela verdadeira tortura, alijavam certas responsabilidades para cima de outros camaradas que já estivessem presos há muito tempo. Nada de anormal. Dado o tempo de corrido, a polícia não queria saber de mandar chamar um preso para o interrogar novamente. "Trabalho" já eles tinham demais. Só uma vez fui levado da Trafaria à Polícia por um caso destes, aliás sem importância. Mas o que verdadeiramenmte me chocou foi constatar até que ponto os anos de prisão, o sofrimento, a falta da família e a perda da esperança de uma solução política podem levar ao aviltamento e à falta de lucidez das pessoas. Naqueles processos havia cartas dirigidas ao próprio Salazar, com as frases e os arrependimentos mais abjectos, fazendo verdadeiras profissões de fé no Estado Novo, elogiando o próprio ditador, e até culpando os comunistas por todas as suas desgraças. Essas cartas tinham apensos ofícios do Director da Prisão, e dirigidas ao Senhor Director da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, remetendo as cartas carimbadas pelos Serviços Prisionais, e também já com carimbo e o Despacho do Director da Polícia: "Arquive-se". Como foi possível que homens que eu tinha conhecido válidos, inteligentes, corajosos, enfrentando a violencia dos GNRs e do a seu abjecto furriel Robalo se tivessem degradado tanto? Não os acuso, lamento-os e sei o que foi que os quebrou...

terça-feira, julho 12, 2005

A Terminália

Vivemos os últimos 14 anos, até Agosto de 1979, numa casa em Luanda onde no pequeno jardim da frente existia uma "Terminalia Catappa", creio que popularmente conhecida por Figueira da Índia. Tratava-se de uma árvore muito bonita que só tinha o "defeito" de ser de folhagem perene e por isso estar sempre a ganhar e a perder folhas, que por serem muito grandes, cobriam o chão permanentemente para desespero dos donos da casa. Apesar disso todos gostávamos muito dela. Parecia ter nascido apenas para dar sombra, pois os frutos (umas bagas quase só caroço) não tinham graça nenhuma. Nesta árvore, tal como na Aurocária, os ramos crescem paralelos ao chão e por andares. Quando a encontrámos já tinha cerca de 30 cm de diâmetro na base e, quanto a altura, as franças mais altas rasavam o beiral do telhado. Por volta dos anos sessenta e oito, sessenta e nove, numa tarde calma e de bom tempo sou surpreendido por um tufão daqueles que duram apenas uns poucos segundos, mas enquanto duram são devastadores. No momento estava sozinho em casa a ler calmamente com a porta que dava para o jardim aberta de par em par. Subitamente, uma rajada de vento entra pela casa dentro arrastando consigo folhas, lixo, terra e levantando o tapete da sala para cima da mesa. A casa ficou quase sem luz, não tive sequer tempo para me assustar porque tudo se passou mais depressa do que o meu tempo de reacção. Mas em breve chegaria o momento de me assustar. Saí para o jardim que, como já disse era pequeno, e não vejo a árvore... nem o carro. Verifiquei que o tronco se encontrava derrubado até ao chão, e a ramagem cobria totalmente o meu pobre carro. A minha mulher quando chegou da rua chorou como a Madalena não teria feito. Telefonei aos bombeiros que vieram equipados com machados e catanas e cortaram os ramos libertando o carro. Felizmente a estrutura da árvore permitiu que os dois ramos maiores, os mais baixos e fortes, se tivessem apoiado no chão fazendo um milagroso e eficiente tripé protector. No dia seguinte a Câmara Municipal enviou pessoal e duas camionetas que limparam e levaram tudo. Só então se pôde avaliar a situação. "Era preciso salvar a árvore". Quase todas as raízes se tinham partido mas, felizmente a raiz principal, bastante grossa, embora rachada, tinha ficado pegada ao tronco que foi erguido e depois escorado. Aumentou-se a altura da terra em volta, regou-se e... esperou-se pela reacção da árvore. Passado algum tempo começaram a aparecer alguns rebentos. Entretanto um ano passou, durante o qual muitos outros rebentos nasceram. Fui cortando os mais fracos para proteger a árvore e deixar que os restantes crescessem mais fortes. Passado mais um ano, seleccionei os três mais fortes que haviam nascido na cicatriz do tronco e já tinham atingido quase um metro, virei-os para cima, juntei-os com um atilho e esperei mais um ano. Eliminei então os dois mais fracos e deixei o mais forte, que já se habituara a seguir a direcção do tronco. Começou a engrossar e eu fui sempre livrando-o da "concorrência". Quando se sentiu com forças, começou a lançar ramos tal qual tinha feito o tronco original, de que ele era o legítimo herdeiro e continuador. Depois disto ainda vivi naquela casa mais oito anos. Entretanto o tronco foi engrossando, crescendo, lançando mais ramos e quando deixei a casa já a Terminália estava mais alta do que era quando a conheci, e as franças mais altas chegavam ao topo do telhado. Nunca mais soube da árvore, mas considero-me um pouco pai dela.

No Palácio de Queluz

Filmavamos o "Bocage" (1936), de Leitão de Barros, e eram os jardins do Palácio o local escolhido. Estavamos a gastar muito filme, repetindo cada plano imensas vezes até conseguir dois "takes" julgados bons. O produtor Costa Carvalho, entre muitas bizarrias, tinha a película guardada consigo, quase com certeza em más condições de ambiente. Nesse tempo não havia ainda ar condicionado em Lisboa. Uma das minhas funções como segundo assistente de imagem, leia-se "pau-para-toda-a-colher", era manter sempre a câmara abastecida de filme. E esta tinha capacidade para chassis de 300 metro que se gastavam rapidamente. Para se avaliar o grau de avareza do senhor, e de inteligência também, basta um pormenor. Como havia câmaras mais ligeiras que tinham chassis de 120 metros, quando se lhe pedia filme, procurava dar destas bobines, o que provocava um desperdício de 20 metros por bobine. Num certo dia, em que como quase sempre me cansei de pedir filme, quando vi que nos arriscavamos a ter de parar as filmagens, avisei o Leitão de Barros (o realizador) do que se passava. Este chamou o Produtor e deu-lhe uma descompostura. Ele desculpou-se comigo dizendo que nunca lhe tinha pedido nada, colacando-me o rótulo de mentiroso, e voltou as costas chamando-me para ir com ele. Chegados ao Palácio, mandou-me entrar para uma sala e fechou-me a porta nas costas. Era uma espécie de escritório improvisado da Produção. Mas havia outra porta que dava para um grande salão que pouco tempo antes tinha sido parcialmente atingido por um incêndio que devastara o Palácio. O Salão tinha várias portas muito altas encimadas por largas "bandeiras" de vidro que tinham rebentado com o calor, deixando o espaço vazio. Por seu lado as portas tinham muitos relevos, e eu tinha vinte anos... Subir por elas acima, passar pelo espaço das bandeiras e descer do outro lado, levou menos tempo do que a contar. Achei-me então num grande pátio gradeado até acima, mas com portões mais baixos que escalei e desci para um grande Largo a tempo de ainda ver o carro do Costa Carvalho em grande velocidade a caminho de Lisboa. Não sei localizar esse Largo, nunca mais por lá passei, e já vão quase setenta anos. Mas ficava ao lado do palácio, visto que encontrei uma porta por onde entrei e me fui juntar à equipa. Contei ao Leitão de Barros e a todos os presentes, e foi uma gargalhada geral. Até que chegou o personagem, realmente em tempo record, muito enfiado, trazendo latas de 120 metros em vez de trezentos, julgando que economizava. E logo o espírito mordaz do Leitão de Barros se manifestou em todo o seu esplendor. "Então ó Costa Carvalho, o senhor com essa idade anda a sequestrar rapazinhos? Isso não lhe fica bem!" E lá foi desfiando mais umas alfinetadas para gáudio de todos nós. O homem ficou tão atrapalhado... Fechou a cara e, mastigando o charuto, num tique que lhe era muito peculiar, virou as costas e desapareceu. Peguei nas latas e fui carregar os magazins de trezentos metros com rolos de 120. E foi essa a única vez em quarenta e seis anos de profissão que senti o sádico prazer de desperdiçar filme.

No Presídeo da Trafaria

Depois dos interrogatórios na Polícia e da incomunicabilidade nas esquadras (passei várias noites na esquadra de Pedrouços, paredes meias com a casa onde vivi os primeiros oito e mais felizes anos da minha vida), fui levado para a Casa de Reclusão Militar da Trafaria. Esta tem interiormente a estrutura de uma ala penitenciária, uma nave com celas de ambos os lados e uma varanda repetindo as celas do primeiro piso. Fui levado para a cela 43 no primeiro piso, deram-me um número, 4763, e dois companheiros. O Casimiro Júlio Ferreira, "funileiro à porta", nascido em Alfama como eu. Veio a morrer no Tarrafal. O outro era o Manuel Gomes Cascarejo, de Ovar, fragateiro do Tejo e com quem vim a partilhar o cativeiro nos Açores. Eram ambos homens feitos de 25 e 28 anos respectivamente e completamente analfabetos. Como não eram permitidos jornais mas os livros eram autorizados, pedi à minha Mãe que me mandasse alguns. Mandou-me um romance de cordel daqueles que se distribuíam em fascículos e que alguém teria mandado encadernar na Oficina do meu Pai e nunca lá fora buscar. Eram sete volumes de "O Punhal de Ouro", ou "Os Crimes duma Associação Secreta" de Guy de Monpassant, ou de "Ponson du Terraille". Já não me lembro, mas para o caso tanto faz, porque o que eu quero relatar é o efeito daquela leitura em duas criaturas que nunca tinham lido nada. Tinham-nos sido distribuídas duas enxergas e três mantas. Com as enxergas no chão, uma manta para as cobrir, o frio de Janeiro numa cela Fria da Prisão, passávamos a vida deitados e eu ficava no meio, na junta dos dois "colchões" que colmatei com a minha gabardina feita um rolo. Assim eu lia para os dois, e tinha constantemente de explicar o significado de palavras muito usadas naquele tempo e naquele género de "literatura". Palavras como "mancebo", "gentilhomem", "semblante", etc. davam-lhes vontade de rir. Lembro-me mesmo de um dia estar o Cascarejo a contar uma discussão que tivera com o Abílio Cortàfolha (encarregado de Estiva), e... "O gajo chateou-me e amandei-lhe um murro no samblante!" Aquele romance era do mais faca e alguidar que se possa ler. Eram crimes e mais crimes feitos principalmente por um Mancebo, e o Cascarejo indignava-se e chegava a pegar no chinelo de trança que tinha no chão ao lado da enxerga e ameaçar-me: "É pá, acaba lá com isso que eu dou cabo de ti!". Eu ria-me e dizia "acabou não leio mais para ti que és um bruto". E ele lá voltava à calma, pedia desculpa e eu continuava a ler até... ao próximo assassínio e nova fúria daquela criança de 90 quilos. Na Trafaria passava-se mal principalmente com a alimentação e falta de higiene. Mas não vou falar em coisas tristes. Bem basta a prisão!

o funeral de Bento de Jesus Caraça

Filmei o funeral do Professor Caraça com a intenção de entregar o filme ao MUD. Embora não fazendo parte da organização, tinha lá amigos e contactos. Aluguei uma câmara portátil (um Kinamo, de corda e 30 metros de capacidade) e comecei o trabalho. Para quem ainda se lembre, o Funeral foi uma coisa grandiosa, eu entusiasmei-me e não me resguardei muito (nada). Trepei ao portão do cemitério, e lá dentro, subi para o topo de um jazigo de onde podia fazer uns bons planos. Nessa altura apareceram lá em baixo três tipos a mandar-me descer. "Não posso, estou a trabalhar." Exibiram-me à distância um cartão e disseram: "Polícia". Desci, que remédio, mas continuei no meu papel. Mostrei-lhes a minha carteira profissional onde estava a assinatura do Comandante Geral da Polícia por baixo do artº da lei que impunha às autoridades o apoio ao trabalho dos repórteres. Chover no molhado, claro, como eu já esperava. Dois deles levaram-me para Esquadra dos Terramotos, o outro (o Inspector Faria, como soube depois – um tipo muito novo) levou a câmara. Na esquadra mandaram-me tirar tudo dos bolsos e foi um intermédio cómico. Os dois eram uns boçais a quererem armar-se em detectives. Olharam para o meu "espólio", e o único que tinha acesso ao dom da fala diz-me. "O Sr. no dia tal foi a Queluz". Eu pensei um bocadinho e confirmei. E ele "E não foi sozinho". Confirmei. "Fui com a minha mulher". "E o que é que foi lá fazer" "Fui para casa, eu moro lá". Mas o burro não desistia, pegou numa fotografia e viu que nas costas estava desenhada a planta duma casa e perguntou para que era aquilo. Eu respondi que andava à procura de casa e quando ia sozinho fazia o desenho para mostrar à minha mulher. Enfim cheguei a perguntar ao grunho se ele lia muitos romances policiais. Aí ele ameaçou-me: "Lá em baixo é que o sr. vai ver". Entretanto chegou um telefonema e eles mandaram-me embora, e que me apresentasse no dia seguinte na António Maria Cardoso. No dia seguinte o Inspector começou por me perguntar a quem é que eu pretendia entregar o filme. Respondi que tencionava vendê-lo presumivelmente ao MUD. "E como é que os conhece?" – Não os conheço mas esperava que eles me vissem primeiro do que os senhores. – "Mas o sr. já esteve preso. Pois estive mas os senhores constataram que o Círculo de Cinema não tinha nada de subversivo" (e aqui tremi à espera que ele se referisse à prisão do 18 de Janeiro) mas não, não era. A notícia que ele me deu sobre o filme é que estava tudo estragado. Não percebi como é que isso poderia ter acontecido, mas fiquei contente, pelo menos não poderiam identificar ninguém. Foi nessa altura que me perguntou se eu não tinha embarcado a bordo do Veleiro Cidade do Porto(!), julgo ser este o nome de um navio em que o Almirante Gago Coutinho viajara para o Brasil. Mas ele queria era saber se eu tinha ido nesse navio para New Orleans. Disse-lhe que não, mas anos mais tarde já em Luanda, fui duas vezes chateado pela Polícia com essa pergunta, e nunca soube a razão dela. Uns dias depois telefona-me o Aquilino Mendes (meu chefe/operador e dono do laboratório onde a Pide tinha mandado revelar o filme) a confirmar que o trabalho estava estragado mas não me explicou porquê. Eu fiquei a imaginar que teriam sido os meus amigos e ex colegas que o tivessem propositadamente inutilizado, mas isso não era coisa que na época se perguntasse, nem que alguém confessasse ter feito. A verdade é que o filme nunca apareceu, e a minha vaga esperança de que tivesse sido guardado por alguém do Laboratório, entregando à Polícia uma quantidade igual de filme velado, esfumou-se. Até hoje não sei o que terá acontecido.

O Círculo de Cinema

O Círculo de Cinema foi um Cineclube criado dentro de uma orientação do Partido Comunista sobre actividades legais. Tendo como directores o José Ernesto de Sousa, o Pousal Domingues, o Eduardo Leite, o Pinto de Carvalho e eu próprio, alugamos uma casa em meu nome na Rua B às Amoreiras. Era uma casa muito grande com uma sala com dimensões suficientes para lá fazermos sessões de cinema de formato amador. Eu morava com a minha mulher e a filha numa parte da residência, e o Círculo ocupava o resto. A renda, 2.200$00, era cara para a época (l947/48), mas pagávamo-la a meias. Tudo acabou no dia 31 de Janeiro de 1948, como adiante se verá. Foi estabelecida desde o princípio, a regra rigidamente seguida de se não exercer lá dentro, a menor actividade política. Não tínhamos um livro, um folheto, um simples papel que fosse passível de intervenção da Censura ou da Polícia. Estávamos puros como açucenas! Então qual era a nossa actividade? Revelar o BOM CINEMA! Escolhíamos de entre os filmes passados no circuito comercial, aqueles que mereciam uma nova visão. Fazia-se uma resenha crítica por pessoas profundamente conhecedoras de Cinema, chamava-se a atenção para determinados aspectos da obra, falava-se do realizador, do argumento, enfim, do filme como integrante de uma dada escola cinematográfica. Imprimíamos um Boletim Mensal com essas notas críticas, incluíamos um questionário pedindo opiniões sobre o filme, juntávamos os bilhetes e mandávamos pelo correio para os nossos 2000 sócios. É verdade! Conseguimos angariar um pouco mais de dois mil sócios. Não havia em Lisboa nenhum cinema com capacidade para tanta gente. O Coliseu, além de ser caríssimo, ficaria vazio com duas mil pessoas. Mais tarde, como "não tinha o prestígio de um Cinema" contratamos então com o Capitólio a realização de duas sessões por mês aos domingos de manhã. Assim, cada filme era exibido duas vezes em semanas consecutivas e os sócios do Círculo eram distribuídos pelas duas sessões. Como curiosidade sempre direi que, se a Polícia fosse ao Capitólio naquelas manhãs de Cinema, não daria o tempo por perdido. Se levasse os espectadores, acabaria com o MUD. (Para quem não seja desse tempo: Movimento de Unidade Democrática). Não posso deixar de lembrar algumas das personalidades da Sociedade Portuguesa que eram sócios e assistiam às sessões matinais e domingueiras do C. de Cinema. Entre outros, cito de memória: Professores Bento de Jesus Caraça e Falcão Trigoso. Mestre Abel Manta. Maestro Lopes Graça. Escritor José Gomes Ferreira, Dois estudantes: João Abel Manta e Mário Soares. Trouxemos de novo à exibição, por exemplo: A Estrada que conduz ao Céu... Roma Cidade Aberta... A Batalha do Rail... La Belle et La Bêtte, e um extraordinário "Western" que tinha passado apenas dois ou três dias no Olímpia (nesse tempo exibia Aventuras) e que, depois de o termos passado no Capitólio, levou a Gerência do Tivoli a chamá-lo ao ecran e re-estreá-lo. Esteve, salvo erro, duas semanas ainda em exibição. No dia 31 de Janeiro de 1948 houve, como habitualmente, uma manifestação junto da estátua de António José de Almeida, reprimida pela polícia, como também era habitual. Pelo chão teriam ficado espalhados exemplares de manifestos "subversivos".
E aqui vamos fazer um flash-back (ou não se tratasse de Cinema). Moravam na Praceta em construção ao fundo da Rua B dois irmãos Moura que a Pide andava a vigiar. Um dos esbirros de vigia terá visto pela janela de uma cave à esquina da Rua, duas pessoas a imprimirem algo num duplicador eléctrico. Era o Pinto de Carvalho e eu no Laboratório de Fotografia a Cores do meu Amigo César de Sá, que gentilmente me facultava a chave e nos permitia que, uma ou duas noites por mês, ali fossemos imprimir o nosso Boletim. Ora o esbirro logo concluiu "alarvemente", como esbirro, que dois tipos junto de uma janela ao nível do passeio a fazer cópias a duplicador, só podia ser coisa de subversivos, e portanto eram os manifestos do 31 de Janeiro. No dia seguinte, 1 de Fevereiro, à tarde, estavam vários associados no Clube a procurar trocar bilhetes de uma para outra sessão quando a Pide assaltou a casa. Eu não estava no momento. Simultaneamente assaltaram o Laboratório do César de Sá e levaram o inocente duplicador "Gestetner". Conforme vim a saber mais tarde, levaram toda a gente que encontraram na casa (até uma amiga da minha mulher que lá estava de visita). Quando já na polícia disse, e provou com cartão, pertencer à Acção Católica, pediram muitas desculpas e livrou-se de ir parar a Caxias. Não levaram a minha mulher porque tínhamos a filha com 22 meses. Entretanto vasculharam a casa toda e num gabinete encontraram em cima de um armário uma porção de folhas "Stencil" cheia de tinta que tínhamos guardado de anteriores Boletins. Contou o Pousal Domingues, que assistiu a tudo, que quando desviaram o armário e encontraram lá "guardados" mais exemplares, foi uma euforia. Ao principio da noite quando cheguei a casa, vi sentado no hall de entrada junto ao telefone uma pessoa desconhecida, o que não estranhei. Mas a minha mulher vem a correr esbaforida da cozinha a dizer, quase a gritar: "Olha! esse senhor é polícia; está à tua espera. Os outros já foram todos presos!" (Ganda mulher!) O polícia aflito: "Óh senhora cale-se. Não tem nada que dizer." Mas o mal estava feito... Pedi ao esbirro que me deixasse ir comer qualquer coisa e aproveitei o lavabo da cozinha para me desfazer de papéis que tinha nos bolsos, nada de importante, mas nomes ou moradas de quem quer que seja não se davam à Pide. Lembrei-me de um dito que ouvira anos antes a um cadastrado no Governo Civil: "À Polícia não se diz nem as horas!" Eu não tinha até ali percebido a razão do assalto e das prisões, só relacionei com o 31 de Janeiro quando ao entrar na António Maria Cardoso, num saguão junto a uma escada de ferro, vi o duplicador do César de Sá e espalhados no chão vários exemplares de manifestos muito rudimentares (como se faziam muito no movimento clandestino e não se pareciam nada com o nosso Boletim, que era uma Obra de Arte. Pois este, que era muito bem impresso, (a máquina era de alta qualidade) tinha até desenhos alusivos ao filme a que se referia, gravados a estilete nos originais pelo então estudante de Belas Artes Lima de Freitas. Claro que a polícia não deu o braço a torcer, e nunca diria que afinal tinha metido o pé numa grande poça. Foi tudo de cambulhada para Caxias sem mais explicações. Não me lembro quantos fomos logo na altura na mesma camioneta, mas durante aquela noite e no dia seguinte, foram entrando mais até sermos mais de vinte. Porquê? Nomes e endereços que os presos no local tinham nos bolsos. Fiz bem em ter ido ao lavabo! Ali foram parar o José Ernesto de Sousa, o João Abel Manta, o Vieira da Silva e o critico musical Humberto d’Àvila. A partir do meio da semana, todos os dias saía um preso, mas continuávamos incomunicáveis e sem visitas. Naquele tempo ainda não havia celas em Caxias, estávamos todos juntos na mesma sala. Por cima da nossa estava presa a Maria Isabel Aboím Inglês e, não quero mentir, mas creio que também a Margarida Tengarrinha. Os presos que eram chamados já não voltavam, e concluíamos que tinham sido libertados. Depois sempre vínhamos a ter confirmação. Até que foi a vez do Humberto d’Ávila, que... voltou à noite. Quisemos logo saber o que se tinha passado mas o Roberto (ou Humberto?), que se vestia muito convencionalmente, chapéu à Banqueiro de abas reviradas (pretas), sobretudo de bom corte e camisa com colarinho de goma, fez questão de se despir cuidadosamente e sempre nos foi avisando que estava muito cansado e que deixaria para o dia seguinte o relato da sua "aventura". Pois a polícia acusava o Cine Clube de exibir filmes comunistas, como Batalha do Rail e Roma Cidade Aberta, e o Roberto foi rebatendo que se tratava de "Obras de Arte" e que até a Orquestra da Emissora Nacional tinha recentemente dado um concerto na Estufa Fria em que tocara uma obra de Prokofief que era um compositor soviético. Aí os polícias atiraram-se ao ar dizendo que isso era mentira, que não seria possível. E pronto, devolveram o Humberto a Caxias enquanto iam investigar o caso. Faço ideia em que trabalhos ficou metida a direcção da orquestra, mas dois dias depois o Humberto foi libertado. Era verdade. Pouco a pouco todos foram libertados ao longo do mês de Fevereiro até que ficamos apenas dois, o João Abel e eu. No dia 28 de Fevereiro foi a minha vez, e o João Abel no dia seguinte. Como dono da casa fui chamado à Polícia logo no dia a seguir. O Chefe de Brigada Gouveia, um tipo sinistro, um homúnculo (já durante os interrogatórios a que fora sujeito aquando da minha prisão em 1934, ele se atirara a mim no meio de uma sessão de pancada, e pendurando-se na gola da minha gabardina gritou: "Estavas quase a dizer, estavas quase a dizer". Talvez estivesse... mas não disse. Mas nesta ocasião só fui chamado para ele me dizer: "Aquela merda não abre mais, ouviu!?" Houve no entanto algo que me deixou perplexo. Como é que a Pide não me relacionou com a minha prisão anterior, com a condenação a dois anos de degredo? Afinal, e para usar a terminologia do pide: "Que raio de merda de polícia era aquela?". Já depois de haver escrito este episódio, lembrei-me de ter ouvido uma conversa do Gouveia (enquanto fazia o compasso de espera a que eram sempre sujeitos os "convidados" naquele antro) com outro esbirro. Dizia ele: "Eu, quando vou fazer uma investigação a uma terra qualquer, para saber quem são os comunistas, não preciso mais do que sentar-me no barbeiro e perguntar onde é que posso arranjar um carpinteiro, um electricista ou um serralheiro que seja bom para me fazer uns trabalhos. Eles logo me indicam o melhor. É esse! Porque aqueles gajos são tão malandros que até são os melhores, só para terem mais influência sobre os outros."

A primeira "cobra"

Quando se está há pouco tempo em África e se tem de andar pelo mato, assaltam-nos vários medos. Ter medo de feras é normal, e até salutar. Mas os elefantes, por exemplo, quando em manada, não são perigosos se não os levarem a eles a ter medo. E assim quase todas as outras espécies. Mas há criaturas muito pequenas que causam medo ou repugnância. No princípio dos anos cinquenta, fui a N’dalaTando em trabalho (na altura chamava-se Vila Salazar), e instalei-me num típico hotel do mato – casa de comércio, "restaurante" e quartos que davam directamente para um pátio de terra batida. O meu quarto era quase monástico, no mobiliário, não no tamanho. Era amplo, a cama ficava longe da porta e estava coberta por um grande mosquiteiro; junto da cama estava uma cadeira em cima da qual se punha a roupa. Na primeira noite, entrei no quarto e acendi a luz no interruptor junto da porta. Peguei na lanterna que sempre me acompanhava, levei-a para debaixo do mosquiteiro, despi-me, descalcei-me, arrumei a roupa na cadeira e fui apagar a luz ao pé da porta. Servi-me depois da lanterna para regressar à cama. Apaguei a lanterna, deitei-me na posição habitual com o braço direito atravessado debaixo da almofada, e nisto sinto uma coisa peluda e viscosa a passear-se pelo meu braço.E aqui cometi um erro tremendo, que me teria causado a morte, caso se tratasse de uma cobra como eu pensara, e que anos mais tarde em circunstâncias semelhantes, já não repeti. Face a uma cobra,não se devem fazer movimentos bruscos,porque por muito rápidos que sejam, os da cobra são fulminantes. Dou um pulo e fico em pé sobre a cama. Acendo a lanterna e vejo com horror uma lagartona aí com uns vinte centímetros, negra e peluda, repugnante. No primeiro momento fiquei sem saber o que fazer (tinha ainda poucos meses de África) mas lá reagi e dei-lhe uma sapatada que a fez desaparecer da minha vista. E desapareceu mesmo, por mais que a procurasse depois dentro e fora do mosquiteiro, por baixo do colchão, enfim, por toda a parte, não a pude encontrar. Obtida pelo menos a certeza de que ela não estava na cama, resolvi deitar-me e adormeci calmamente. De manhã faço as minhas abluções, visto-me, calço as peúgas e por fora delas as meias grossas, e quando vou a calçar o botim direito (calço sempre o pé direito primeiro, não me perguntem porquê) sinto uma coisa mole lá ao fundo. Encolho repentinamente o pé; procuro descalçar o botim; pé encolhido não se descalça; estendo o pé, encontro a coisa, encolho o pé, o pé não sai. Enfim, foi uma luta até que lá me consegui descalçar. Sai então lá de dentro a pobre lagarta, em petição de miséria. Ainda por cima não era perigosa, apenas repugnante, mas essas subtilezas só vim a aprender mais tarde. Na altura foi apenas um grande susto.

sábado, julho 09, 2005

"O Pianinho"

Chamava-se Jaime Saúde Machado, era serralheiro mecânico na Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata e morava em Alfama, na Rua do Vigário. Conheci-o na Tropa, em Cascais, onde ambos sentámos praça em 1937. Tinha, como quase nós todos afinal, uma grande qualidade: detestava a Tropa. Mas detestava a tal ponto, que cumpria religiosamente os regulamentos. No fundo, a melhor forma de não ter aborrecimentos para além do resultante da sua forçada presença. Tinha imensa piada e ria-se de tal maneira que chegava a ficar com a boca aberta, a meio de uma gargalhada, sem produzir o menor som. Todos nós procurávamos, com o auxílio das famílias, "ajeitar" aos nossos corpos as fardas que nos eram distribuídas, normalmente alguns números acima do indicado. Ao Jaime "Pianinho", que era alto e magro, foi entregue um uniforme, tendo em vista a altura e a correspondente largura, mas ele ficava a nadar dentro da roupa. Não lhe mexeu. Porém, e para preencher o espaço entre o magro pescoço e a largura da gola, servia-se de um grossíssimo lenço de pano cru que, curiosamente, se destinava exactamente a isso. Quase todos nós, no entanto, usávamos uma tira branca mais fina, tipo "volta de padre" que deveria aparecer discretamente acima da gola do "dolman". Mas a "cereja sobre o bolo", era o uniforme no seu conjunto. O dolman, um casaco que descia até às virilhas, era apertado na cintura pelo cinturão da ordem, obrigando a parte abaixo dele a abrir-se em "godés", dando-lhe um aspecto de bailarina clássica em vestido de "mescla". O barrete seguia as pisadas do restante uniforme. Nenhum de nós o usava sem antes lhe dar um tratamento à base de água quente e "massagens", e só depois o enfiava na cabeça, ainda molhado. Só assim tomava forma. Ao sábado, o Pianinho, após vestir o uniforme número 1, o já referido, vinha pavonear-se diante de um grande espelho que havia na caserna e onde podia contemplar-se de corpo inteiro, fazendo uma espécie de passagem de modelos, enquanto se ria a perder e ia comentando a sua performance: "Olhem para isto, nunca se viu nada igual, quando chegar a Lisboa, toda a gente dirá: "Que bela figura de Militar!" E ria-se até à sufocação. Fazia sempre um embrulhinho muito bem feitinho, atado com uma fita colorida e dizia: "Aqui está um lindo embrulho de Pastelaria, mas são... peúgas sujas", e ria-se a perder. Saímos da Tropa ao mesmo tempo, mas não nos perdemos de vista, ambos vivíamos em Alfama separados por uma escassa centena de metros. Ele voltou para o seu lugar na Fábrica de Material de Guerra de Braço de Prata. Eu voltei à Tòbis, ao Cinema, onde ainda fiz dois filmes: A Aldeia da Roupa Branca de Chianca de Garcia, e João Ratão de Jorge Brum do Canto. Mas a Segunda Guerra aproximava-se, o filme negativo(Agfa) era fabricado na Alemanha e começou deixar de ser possível obtê-lo. Fiquei sem trabalho e sem saber por quanto tempo, que foi muito mais do que na altura se pensava. E foi o Pianinho que me deu a ideia: "Porque não vens trabalhar lá para a Fábrica, estão a meter empreiteiros para 10 horas de trabalho, e podes ganhar até vinte cinco escudos por dia". Era um bom ordenado (fora do Cinema, claro) "Mas eu não sou serralheiro, como é que posso ser admitido? "Não faz mal, a prova é fazer uma pequena peça, eu trago-te uma para tu aprenderes a limar e depois nós lá dentro trataremos do assunto. "Vai ter com o Capitão Jonet (que tinha sido nosso Comandante) e pede-lhe uma cunha. Vais ver que serás admitido". Lá fui, e o Capitão prometeu - e cumpriu. Entretanto fui treinar para uma pequena oficina de um amigo onde havia um torno de bancada. O Pianinho trouxe-me uma peça em bruto com as indicações das medidas finais. O meu amigo ensinou-me a posição do corpo e a maneira de empunhar a lima, coisas importantes para parecer um verdadeiro "serralheiro" e não arruinar a peça. Quando me chamaram a exame, deram-me uma peça nova e senhas para levantar ferramentas na Ferramentaria. Por aí ficariam a saber se eu era ou não do ofício. Tinha de saber pedir as ferramentas certas. Mas nisso já o Pianinho me tinha industriado. Fui então ocupar um dos quatro tornos de bancada, com mais três "serralheiros" de ocasião. Começou o exame que iria durar uma hora. A peça era uma cavilha de fixação da coronha das espingardas Mauser, que na altura estavam a ser transformadas em carabinas. A cavilha, vinda em bruto da fundição, tinha de ser limada até ficar no formato e nas medidas certas, cuja tolerância era de poucos "centésimos de milímetro". Para isso tínhamos levantado na Ferramentaria um "escalão", chamado em serralheirês "Péclisse". Os perigos eram dois: não raspar (limar) a peça correctamente e deixa-la abaulada, ou ultrapassar as medidas de tolerância e torná-la mais "magrinha". A certa altura, um operário aproximou-se de mim limpando as mãos a um pedaço de desperdícios e perguntou - "Então como vai isso? "E retirou-se deixando em cima da bancada uma cavilha já acabada...
Já admitido na Fábrica, ia muitas vezes almoçar ao Refeitório que ficava fora da Fábrica, e o Pianinho ia comigo. Um dia o almoço era bacalhau cosido com batatas, muito bem servido mas um pouco caro, por isso resolvemos utilizar um sistema muito comum naquele meio, que era comer no mesmo prato: Não é tão "porco" como pode parecer, embora não colha o meu entusiasmo. E é regra estabelecer-se uma linha imaginária que divide o prato em dois hemisférios, invioláveis pelo companheiro da frente. Só se pode molhar pão já no fim, e só no nosso hemisfério. Eu estava muito mal dos dentes, e quando íamos a meio do almoço, enfia-se-me um bocado de alho dentro do furo do dente. Dei um berro terrível e fiquei perfeitamente imobilizado pela dor. O Pianinho olhou para mim perplexo, viu que eu não ia comer mais, desata a rir-se e, molhando gulosamente o pão no prato, comeu tudo. Pedi uma autorização de saída e fui directamente para o dentista. Se já o tivesse feito mais cedo, teria podido apreciar até ao fim aquele bacalhau a dois, que até estava muito bom. Fiquei grato ao Pianinho e até lhe perdoei a crueldade da risota. Arranquei enfim o dente e fiquei livre... para voltar à próxima bacalhauzada.

"Roupa ao pêlo"


No filme "A aldeia da roupa branca" de Chianca de Garcia, com Beatriz Costa, que era à partida uma garantia de sucesso de bilheteira, havia dois conflitos paralelos: O das carroças, e o das Bandas de Música, vizinhas e rivais. E, se me é permitido, também houve um erro da casting: O "galã" era o José Amaro, bom actor, mas pouco sorridente e possuidor de uma voz demasiado grave. O "vilão" era o Oscar de Lemos, que era alegre, folgasão por natureza e com um sorriso muito comunicativo. Numa corrida de carroças entre o galã e o vilão, o público acabava a torcer por este. Mas no filme há também duas Bandas rivais, e num arraial muito concorrido, surgem inesperadamente as duas bandas e ambas querem ter acesso ao Coreto. A figuração foi recrutada entre a população saloia das vizinhanças. Lumiar, Caneças, Bucelas, e por aí... E em boa verdade não eram bem figurantes, estavam ali a fazer deles mesmos. A cena passava-se num largo de aldeia, e quando foi da corrida ao Coreto, montou-se um "praticável" alto (uma espécie de andaime), em cima do qual se instalou a câmara e de onde o realisador, o Chianca, abarcava todo o Largo, coreto incluído. Foi detalhadamente explicado aos figurantes que tinham de fingir que estavam zangados e simularem uma cena de pancadaria. Mas aquilo para aquela gente era uma festa, ainda por cima paga à razão de cinco escudos por pessoa. E então foi mesmo uma festa, toda a gente se ria e fingia que batia... Foi um desatre! E já a equipe técnica dava por irrealizável a cena, quando o Perdigão Queiroga e o Oscar Acúrcio, dois cérebros malévulos, resolveram a situação metendo-se no meio do povo. Foram dar instruções para a repetição da cena. E a explicação não podia ser mais clara e eficiente: "Olhe lá, não queremos zaraga a sério aqui, mas parece que você há bocado aleijou aquele ali e ele diz que vai vingar-se. "Qual aquele? Qual aquele?" Depois de devidamente informado, vinha a recomendação: "Não vá para aquele lado..." e lá foram espicaçando alguns figurantes. Tudo devidamente acertado, o Chianca, lá de cima grita: ACÇÃO!!!, e era vê-los a atravessarem o Largo em busca do tal "daquele ali"... Bastou que os dois "intriguistas" tivessem contactado meia dúzia para que se gerasse uma cena de pancadaria em que até se partiram alguns instrumentos da Banda. Logo que se consegiu parar o pandemónio, sai lá do meio o Oscar de Lemos, que por tabela também tinha levado uns sopapos, e grita indignado para o alto do praticável: "Ó Chianca, isto não popde ser. No estrangeiro não se fazem estas cenas com actores, fazem-se com duplos. Ao que, com toda a calma, o Chianca respondeu: "Pois é, mas como nós cá não temos actores, fazemos tudo com os duplos". Foi uma gargalhada geral, e quem mais se riu foi o próprio Oscar.

Psicologia

Nas filmagens do "FADO" de Perdigão Queiroga, tudo correu bem, e gente e coisas felizes não têem história, mas sempre me lembro de um episódio curioso que coloca o Queiroga na categoria dos grandes "Psicólogos" que conheci. Havia uma cena muito dramática em casa da tia da Cantadeira, que era interpretada pela Dona Alda, um senhora já com alguma idade mas que, mesmo sendo amadora, era muito boa actriz. Num "plano" que metia um "travelling" e era um pouco complicado, a Dona Alda enganou-se na "fala". Nada de grave: "Corta, vamos repetir!". Mas a senhora tornou a enganar-se. O Queiroga tentou acalma-la: "Ó Dona Alda, não tem importância, isso acontece a todos. Vamos repetir e vai ver como vai sair bem. (Não sei porque diabo se chama "erro de simpatia" ao errar sempre na mesma palavra). Mas foi essa tal "simpatia" que aconteceu. A Dona Alda enganou-se novamente. O Queiroga dá um BERRO, CORTA!!! E vira-se para mim e dá-me uma descasca como não seria possível num "cenário real". "Parece impossível, João! Agora que a senhora foi tão bem é que tu fazes um disparate desses"? E por aí fora, lá me foi dizendo uns desaforos, e eu muito contrito a pedir desculpas à Dona Alda que só dizia: "Ah! Não fui eu? Ai, ainda bem; ainda bem que não fui eu!" E nem reparava na minha triste condição, a levar nas orelhas. E tão inocente que eu estava! Toda a equipa se espantou com solução que o Queiroga arranjou para o caso. O certo é que a senhora não voltou a enganar-se e lá se filmou a cena.

quinta-feira, julho 07, 2005

Pedra Verde


De entre as operações de guerra que filmei para as "Actualidades de Angola", uma que muito me marcou foi a operação Pedra Verde, na zona do Úcua, a norte de Luanda. No Quartel General, eu e outros camaradas jornalistas, recebemos camuflados e juntámos-nos a uma coluna militar a caminho de... (destino desconhecido). Tomei lugar num jeep comandado por um 1º sargento que gentilmente me deu o lugar da frente, ao lado do motorista. Além de "gentil" parvo é que ele não era. Aquele lugar era o mais procurado pelo inimigo emboscado. Mas não me preocupei muito porque ainda íamos pela estrada de Catete e ali não havia grande perigo. Mas mais à frente, os soldados e o próprio sargento começaram, "Olha, lá estão os gajos!". E eu perguntava: Mas quais gajos? "Os turras, não ouve?" E isto repetiu-se várias vezes, até que eu perguntei: Mas o que é que vocês ouvem afinal? - "Os gajos a assobiar. "Olhe, olhe, oiça agora... Fartei-me de rir. Era um "Noitibó, um pássaro que tem um assobio repetitivo, género "piu, píu, píu", que se encontra muito na beira das estradas e que realmente parece um assobio humano. Mas toda a gente que alguma vez andou pelo mato o reconhece, é muito frequente. "Então vocês de onde é que vieram?" –"Viemos do Grafanil". Está bem, mas antes do Grafanil? (o Grafanil era o aquartelamento em Luanda onde ficavam os recém chegados da "Metrópole"). "Viemos de Lamego". Caiu-me a alma aos pés! Eram todos "MAÇARICOS"! Soldados que não só nunca tinham entrado em combate, como nem sequer tinham posto ainda um pé no mato. E eu sabia, por experiência própria, o medo que faz o mato das primeiras vezes que lá se mete o pé.
Sob o comando do Tenente-Coronel Fialho Prego, e tendo como comandante operacioanal o Major Loureiro, a operação integrava também um batalhão de Infantaria e um pelotão de Cavalaria com um carro todo o terreno comandado pelo Alferes Monje, hoje General. E ainda um oficial de referenciação que ia dando a nossa posição de forma a que a Artilharia fosse batendo o terreno à nossa frente, sempre a uma distância "conveniente". Este oficial ia também tomando nota de quantos projécteis passavam sobre nós. Era um ruído arrepiante quando passavam, parecia pano a rasgar! E deveria ter informações da sua bateria sobre o número de disparos efectuados. Sabia assim quantas granadas poderiam eventualmente não ter explodido. Destas, uma secção de sapadores comandada por um sargento iria localiza-las e faze-las explodir. Mas assustador mesmo era o rugido dos "jactos" voando a razar as árvores. Só se ouviam quando já estavam em cima de nós e... já passou! As companhias avançavam paralelamente, mas afastadas umas das outras. Nós seguíamos na do meio. Dormimos a primeira noite a meio do caminho, e só aí abri a ração de combate, e mesmo assim só para comer o queijo, a marmelada e as bolachas. Isto porque durante o dia sofria tanto com a sêde que chegava a beber a água que os soldados me davam generosamente dos seus cantís. Se tivesse comido durante a marcha não aguentaria a sede. Mas chegada a noite parámos para dormir, guardados por sentinelas, apesar de não haver receio de tiros vindos da mata - o clarão indica a posição do atirador, segundo me explicaram. Ao nascer o dia, o comandante de uma outra companhia veio até ao pé de nós trazendo um ordenança e, mal chegaram, um tiro vindo da mata atingiu o ordenança e fracturou o braço ao Capitão. Pouco depois o Capitão entrou em estado de choque e foram ambos evacuados para o hospital em Luanda. Prosseguimos então a marcha com uma Chaimite abrindo a coluna e fazendo "reconhecimento pelo fogo". Mas a metralhadora do carro encravou-se, e foi então um cabo, grande e possante, da guarnição da Chaimite, auto-intitulado 1º cabo Açoriano, quem pegou numa metralhadora ligeira "Lieuse", e chamando um soldado para o municiar arrancou à frente disparando rajadas para um lado e outro da mata. Chegados finalmente à zona de operações, o Alferes, sempre com o seu pingalim, sentou-se à frente do carro TT e nós, fotógrafos e operadores passamos para a frente para filmar a situação. Entretanto tinhamos chegado a um lugar onde a picada estava cortada por uma vala, e o carro não conseguia passar. Nessa altura passou por nós uma secção de morteiros para ir montar um tubo um pouco mais à frente. Aproveitei e fui com eles para filmar aquele aspecto da operação. Nesse preciso momento, desencadeou-se uma fuzilaria incrível. No meio de tudo aquilo ouço um homem a gritar: "Estou ferido, estou ferido". Pela direcção da voz concluí que o homem estaria para lá do carro TT. Pedi aos soldados que estavam ali a fazer fogo para a mata: "Cubram-me que eu vou passar". Corri aquela escassa dezena de metros, passei a vala e abriguei-me atrás do carro. A picada contornava um morro, portanto do nosso lado esquerdo o terreno era mais alto e descia em declive para o lado direito. Como disse, abriguei-me atrás do carro, e vejo estendido no chão a uns três metros à frente, e a descoberto, um soldado ferido na cabeça mas gritando como um possesso. Filmo o homem e procuro acalma-lo. "Ó homem, rola para cá, isso não é nada". Agora veja-se o caricato da situação: Um tipo convenientemente abrigado atrás de um carro de ferro a dizer a um outro, ferido na cabeça. "Ó pá, isso não é nada..." Mas visto friamente é mesmo assim. Com um tiro na cabeça, das duas uma, ou o tipo está morto ou em coma ou, se tem capacidade para gritar, não deve ser muito grave. O tiroteio continuava intenso, mas agora só de cá para lá, pois quem disparara de lá, ou já ia longe ou já tinha sido morto. Nessa altura fiz um grande disparate: Pus a máquina de filmar no chão, e tentei rastejar para puxar o rapaz para trás do carro. Nesse momento um soldado do Pelotão de Cavalaria (os do Carro TT), que estava na parte mais elevada da picada, dá um mergulho e aterra directamente junto do ferido arrastando-o para junto de mim. E eu perdi aquela imagem magnífica, aquela decisiva e corajosa acção daquele soldado. Depois filmei o curativo que um soldado fazia ao outro, e o ferido tinha apenas um furo muito redondinho no lóbulo da orelha esquerda (depois inchou muito e rompeu-se ficando um rasgão feio). Mas o mais fantástico é que ele tinha também um rasgão no sobrolho direito. Era quase inacreditável, o soldado foi atingido por dois tiros na cabeça, não morreu, e nem sequer ficou gravemente ferido. Mas eu não me perdoo por ter largado a máquina!

Li há pouco tempo, por acaso, uma entrevista com um fotógrafo com largo currículo em reportagens de guerra, em que abordava exactamente esta questão, e que já se lhe tinha posto mais do que uma vez. Ir acudir a alguém em perigo perdendo um "boneco" fundamental, ou fechar os olhos da consciência e fazer aquilo que é o seu trabalho. Ele não chegou a conclusão alguma... e eu também não.

Entretanto começou o corte dos troncos para libertar o carro, e aqueles "maçaricos" aglomeravam-sa para ver. Eram um belo alvo para quem estivesse ainda emboscado na mata. Por mais que os oficiais os quisessem dispersos, voltavam sempre a juntar-se. Tiveram sorte! Ao menino e ao borracho...
A partir dali desenvolveu-se o avanço em direcção ao objectivo, uma aldeia no cimo de um pequeno morro. Estava deserta, como se esperava, mas revistado um pequeno "hospital", foram encontrados sinais de feridos daquela manhã. Entretanto, enquanto um grupo revistava umas cubatas, um outro que chegou depois, apercebendo-se do movimento lá dentro, desata aos tiros sobre as cubatas. No meio de gritos e palavrões, saiem de lá os soldados furiosos e milagrosamente incólumes, dado que as paredes das cubatas são de capim. Os sapadores tinham iniciado o seu trabalho e já tinhamos ouvido dois ou três rebentamentos. Um teve lugar ali bem próximo, mesmo atrás de uma cubata, levantando uma coluna de terra e de poeira, e lá de trás aparece um velho sargento, de camisola interior ensanguentada e com uma mão no pescoço. "Olhe meu capitão, olhe o que aquele malandro me fez". E tira a mão do pescoço de onde esguicha, liberto da pressão, um repucho de sangue. Não quero mentir, mas pareceu-me um esguicho aí de uns quinze centímetros ou nais. Fomos ver o que acontecera, e vimos três soldados no chão com estilhaços nas costas, um furriel com as pernas horrivelmente feridas e outro homem a quem faltava a garganta. Horrível de ver! Como teria acontecido aquele horror? Tinha sido o furriel a vê-la. "Olha esta não rebentou..."
Paragem de dois dias.
Pedi para aproveitar o transporte e vim a Luanda, creio que também vinha o Fernando Farinha, ainda um jovem. Tomar um banho reparador, matar a fome! Já estavamos no mato há uma semana, e a viajem dentro daquele carro de ferro, por estradas de terra batida numa velocidade maluca, amontoados uns sobre os outros acompanhando um ferido que entrava em coma mas felizmente não morreu.

Chegados a Luanda (nesse tempo eu vivia na Cela), fui a casa do pintor Neves e Sousa, onde me aboletava, olhei para o espelho da casa de banho e... fechei os olhos. Despi o camuflado e sem me atrever a olhar-me, lá consegui tomar um banho. Divino! Só depois tive coragem de olhar o espelho, ao fazer a barba. O meu amigo Alfredo Barreiros levou-me depois até ao snack da Versailles, disposto a comer um daqueles bifes maravilhosos como eram os do Nicola em Lisboa. E o bife chega, mergulhado num molho que cheirava a distância e um ovo que ainda borbulhava de quente... Deitei-me gulosamente ao bife e ao ovo, pronto a saborear aquela preciosidade... que se me enrolou na boca e não fui capaz de engolir. Tive de contentar-me com o cheiro, uma torrada e um chá. O meu pobre estômago desconfiou da fartura, e acho que fez bem, defendeu-me de uma congestão. Quem se lambeu com o bife foi o Alfredo, que diante do meu olhar de inveja devorava o meu bife e se ria, o malandro. No dia seguinte lá voltei às rações de combate e água dos cantis dos soldados, até chegarmos à gigantesca "Pedra Verde" que dava nome ao sítio. Era do feitio do Pão de Açúcar, não tão grande, mas mesmo asim impressionava, e era verde porque coberta de musgo. A missão era içar a bandeira nacional, por alguns minutos, no cimo da pedra. Começámos a trepar, e iamos descansando nuns socalcos que havia de onde em onde. O meu material, cada vez mais pesado, foi às costas dos soldados até à etapa final. E eles lá cumpriram a missão, que eu filmei, apesar de não tão próximo como desejaria. Os meus quase cinquenta anos tiveram mais força!


Outras imagens da Pedra Verde (cortesia de Manuel e Pedro Mateus)

"Ribatejo"

(1948)
Durante as filmagens de "Ribatejo", de Henrique Campos, houve várias peripécias interessantes que envolveram toiros e campinos nas lezírias de Santarém. Talvez tudo não passe de saudades da juventude e das emoções sentidas no momento em que as vivi. De qualquer forma aqui ficam:
Como é tradicional no cinema, quase sempre coexistem um "rapaz", era assim que se dizia no meu tempo, e um "bandido", ou vilão. Naquele filme o "rapaz" era o Virgílio Teixeira, que fazia de campino, e o "vilão" era o Alves da Costa, que era o "Maioral dos toiros". Ora o Maioral, por razões que não interessam agora ao caso, tentou matar o campino lançando sobre ele uma manada de 18 touros. Aqui, quero esclarecer que se tratava de touros amansados mas autênticos. Pois um dos planos a fazer consistia na perseguição do campino pela manada. Para isso, um duplo do Virgílio Teixeira (um campino verdadeiro) corria à frente da manada, e atrás desta, empoleirado no pára-choques de um automóvel grande e antigo, ia eu que filmava os toiros em primeiro plano, com o campino a correr à frente deles. Quando o duplo às tantas era alcançado, deixava-se cair, e os toiros passavam-lhe por cima sem lhe tocar. Isto pode parecer impossível, mas o homem fê-lo sem dificuldade. Mas entretanto surgiu um problema: Se se filmava muito perto, via-se que não era o Virgílio, se se filmava de mais longe não tinha emoção. Repetiu-se duas ou três vezes, até que, com um balanço maior do carro, eu caí do pára-choques. A corda que me amarrava ao tampão do radiador partiu-se (aqueles carros antigos tinham uma figura à frente, no tampão). Consegui com um braço apanhar um dos faróis, e com as pernas debaixo do carro – que felizmente era alto – fui arrastado alguns metros, conservando a câmara na outra mão sem que ela se danificasse. E ainda bem! Porque ainda ouvi o César de Sá, o Chefe Operador, gritar lá de cima: "AI A MINHA MÁQUINA!" O que lhe valeu alguns impropérios do condutor, o Ilídio Santos, que tinha uma voz rouquênha e que nós dizíamos ser "o som das fitas portuguesas". O Sá, que era uma pessoa muito educada, ficou envergonhadíssimo. Mas compreende-se a reacção: a máquina tinha-lhe custado uma fortuna, mais de oitenta contos em 1948, era uma pipa de massa! Mas felizmente nem a máquina nem eu sofremos nada. Só que chegámos à triste conclusão de que assim não íamos a lado nenhum... e aí entrou-se no reino da loucura. O Virgílio Teixeira lá deve ter pensado: "Se os toiros não pisaram o campino, não irão ter o descaramento de me pisarem a mim que sou o "galã". E assim, tomou-se a decisão de filmar uma só vez. E preparou-se a cena: Montaram-se calhas para o "charriot", e o Virgílio agarrado a uns santinhos e com uma golada de hemoglobina na boca, deitou-se no chão a uns quantos metros do fim das calhas. A câmara, montada no charriot, começaria a filmar no momento em que entrasse em campo a manada de toiros vinda da direita. Tratava-se de um "travelling" em frente. A câmara ia avançando enquanto a manada passava sobre o Virgílio, e logo que chegava a "plano próximo", o Virgílio levantava a cabeça, voltado para a câmara, e deitaria fora o "sangue" que tinha na boca. E assim se fez a tal "única vez" que se tinha acordado fazer. Só que os toiros não quizeram tropeçar naquela coisa estranha que estava no chão, e o plano não prestava. No local só tinha ficado o actor, o Marcos, que empurrava o charriot, eu na câmara, e um campino a cavalo ao nosso lado para evitar que os toiros se desviassem para cima de nós. O carro entretanto tinha-se afastado com o Campos (realizador), o César de Sá (chefe operador), o Luís Miranda (assistente do Campos) e a anotadora Virgínia de Vilhena, minha mulher e grávida de cinco meses. Quando voltaram, depois do plano filmado, e o Campos me perguntou como tinha sido, não tive outro remédio senão dizer que o plano não era bom. Qual não é o meu espanto, quando o Virgílio se dispõe a fazer outra vez, e o Campos concordou. Repetiu-se por mais três vezes, com os toiros a desviarem-se sempre, e eu sempre a ter de dizer que o plano não servia. Aqui tenho da fazer um parêntesis: Um "cameraman" tem de manter sempre uma grande calma para bem enquadrar a cena, não tremer a câmara e aperceber-se de como decorreu a filmagem, sobretudo tratando-se de um travelling. Naquelas circunstâncias, com um amigo a correr perigo de vida de cada vez que se repetia o plano, ter de ser eu o carrasco e ainda assim manter a calma necessária para não falhar os movimentos, causava-me um grande "stress" (palavra que nessa altura não se usava). Enfim, à quinta vez os toiros já se tinham habituado "àquela coisa no chão", e levaram o Virgílio uns dois ou três metros embrulhado nas patas. No fim do travelling tive de fazer uma panorâmica para a esquerda para enquadrar o Virgílio que fez o "papel", virando a cabeça e cuspindo o "sangue", que eu pensei se não seria mesmo sangue. Quando aquilo acabou e o carro chegou junto de nós, e todos fomos ver como estava o rapaz, os meus nervos rebentaram finalmente. Fugi para junto de uma árvore afastada, vomitei, mijei, e chorei como uma criança. O Virgílio não tinha nada de grave, apenas estava todo sujo de terra e palhas, e sentia umas dores nas costelas. Foi observado no Hospital e tudo estava bem. Claro que ninguém fez mais nada naquele dia. Como notas pitorescas à volta disto, sempre direi que o público na estreia não ligou a mínima a esta cena, porque, com um bom senso maior do que o que nós demonstrámos ao filma-la, deve ter pensado que aquilo era "um grande truque". Em contrapartida delirou e aplaudiu o Virgílio a pegar uma cabeça de toiro de papelão na Praça de Santarém. Moral da estória: "O público gosta de ser enganado". Uns tempos depois mostrei aquele plano a um Chefe Operador americano com quem trabalhei a seguir, e o comentário dele: "Se o actor tivesse morrido ali como é que vocês acabavam a fita?" Espírito prático este dos Americanos!

terça-feira, julho 05, 2005

Lobito


A primeira filmagem aérea que fiz foi sobre a cidade do Lobito em 1950. E optei por este tipo de imagem porque o produtor para quem eu trabalhava conseguira convencer o Presidente da Câmara, que era simultaneamente Comandante do Porto, a encomendar, com o apoio das Forças Vivas da terra, um Documentário de 600 metros - 20 minutos - em vez dos habituais 10 minutos. Isto é: Duzentos contos em vez de Cem (era muito dinheiro em 1950). Aliás, tínhamos acabado de fazer um outro filme em Luanda, cidade muito maior, e só com os 10 minutos.
O Lobito era uma cidade muito bonita, com uma linda baía e um importante porto. Tinha uma avenida muito comprida junto ao mar, na Restinga, com várias vivendas modernas, e tinha depois os Bairros da Caponte e do Compão com poucos prédios e grandes espaços. O resto eram mangais. Difícil portanto encontrar assunto para tanto filme. A vista aérea seria assim uma chance para gastar mais algum tempo, filmando do ar o que depois se iria mostrar de outros ângulos em terra. O único avião disponível na altura estava em Benguela, a cerca de 30 quilómetros do Lobito. Fui pois a Benguela, e o Aéro-clube cedeu o aparelho. Baptizado com o nome de um médico, Dr. Frazão, o avião dava apoio sanitário às pescarias que se estendiam no litoral de Benguela quase até Moçâmedes. Era vermelho, e tinha na fuselagem um disco branco com uma Cruz Vermelha. Era um bimotor monoplano, de asa baixa e "cockpit" fechado, e só com um lugar ao lado do piloto. Quer dizer: não tinha uma porta lateral que pudesse ir aberta enquanto voava. Teria, e tive, de me acocorar sobre o assento e filmar por cima do motor direito com a interferência da élice num canto da imagem. Enfim, foi o melhor que se conseguiu. O piloto era o Fragoso, mulato de Benguela com quem selei naquele dia uma amizade que durou mais de trinta anos. Tantos quantos a vida depois lhe concedeu.
Descolámos de Benguela, viemos para o Lobito, filmámos tudo o que eu queria e ainda fomos filmar a Catumbela, uma pequena vila a meio caminho entre as duas cidades. Filmámos as plantações de cana de açucar da Cassequel, enfim: Começámos a "encher chouriços". Depois rumámos a Benguela para aterrar no aeródromo de onde tínhamos saído – um campo de terra batida não muito liso – mas que o Fragoso conhecia bem. Ao accionar o comando eléctrico que descia do trem de aterragem... não aconteceu nada. O trem continuou recolhido. Mas o Fragoso não perdeu a calma, "Isto é da bateria que está fraca, mas não faz mal, sairá mecanicamente". Dito isto meteu um dedo numa argola que havia no chão entre os nossos dois assentos, puxou e... nada. Aí o Fragoso ficou zangado: "Aqueles sacanas da manutenção não são capazes de pôr o avião sobre cepos e experimentar o trem, agora esta merda está ferrugenta e não funciona!" "Então e agora?" atrevi-me eu a perguntar. E o piloto, já com a calma recuperada respondeu-me: "Esteja descansado que cá em cima não ficamos". Como é de calcular, fiquei descansadíssimo. "Bem, vamos dar mais umas voltas para acabar a gasolina e aterraremos de papo, o mais que pode acontecer é partirmos as pernas." Eu, como se calcula, estava cada vez mais descansado! Resolvi então dar o meu contributo. Meti todos os dedos que pude na tal argola, puxei, puxei, puxei, ouviu-se um grande barulho, (julguei ter arrancado o fundo ao avião) mas a ferrugem cedeu e o trem lá saiu. Aterrámos normalmente, fomos beber um copo e ficámos "amigos de infância".

Ao longo dos anos tive ocasião fazer mais filmagens aéreas, não só com o Fragoso mas também com outros pilotos. Nos anos 60, já o meu amigo se tinha mudado para o Lubango onde pilotava o avião do Governor do Distrito. E não resisto a relatar um caso anedótico. O Fragoso tinha um carro descapotável, e no "tablier" tinha um cartão de visita em prata onde estava escrito : "José Grangeio Fragoso, piloto de aviões, contratado pelo Governo do Distrito do Lubango como motorista". Assim era a burocracia. Como não tinham criado o lugar de Piloto, rodearam a questão contratando-o como motorista. Eu conhecia bem o Governador, desde o tempo em que era Administrador do Concelho em Vila Nova, perto de Nova Lisboa. Curiosamente ele chamava-se Celso Vila Nova. Era um homem extremamente simpático e prestável, e já me tinha cedido o avião de outras vezes para filmagens ou apenas para deslocações. Pois mais uma vez fui ter com ele, e quando entrei no Gabinete estava ele em conversa telefónica: "Mas ó colega, isto não pode ser, você e os outros Governadores têm de se impor e conseguirem também um avião para o Distrito". A conversa continuou e eu apercebi-me que se tratava de um pedido de cedência do aparelho... "Estou lixado", pensei eu. Quando finalmente terminou o telefonema, voltou-se para mim, mas ainda a falar do assunto. Até que me perguntou: "Então e o que é que o traz por cá?" E eu ri-me... "Já sei, é por causa do avião não é? Você sabe que eu lho empresto sempre, mas é que agora o Fragoso está de férias". E digo eu: "Mas isso não é problema eu trouxe o Fragoso comigo. Ele está ali fora." Aí foi a vez de ele se rir, e eu lá consegui mais uma vez o avião.
No dia seguinte descolámos de manhã cedo para sobrevoar a estrada em construção entre Sá da Bandeira(Lubango) e Serpa Pinto(Menongue), a capital do Cuando-Cubango. Filmámos os vários troços em diferentes estados de construção, com maquinaria pesada em acção, fazendo passagens a baixa altitude, o mais lentamente possível, não sem algum susto do pessoal de terra. Mas teríamos de filmar também em terra, junto das máquinas e das obras. Fomos pois em busca de um campo de aviação que o Fragoso sabia existir, ou ter existido, por aquela zona. O "perto" e as distâncias em Angola são sempre muito grandes. Mas lá fomos encontrar o estaleiro da Construtora junto de um antigo campo de aviação. Ainda lá permanecia o mastro onde estivera a "manga" de direcção do vento. O Fragoso fez um voo rasante para avaliar o terreno e depois demos a volta para aterrar. O campo estava muito mal tratado, cheio de capim, já não era para aviões. Mas mesmo assim lá aterrámos... Primeiro passando sob um fio telefónico que ia do mastro às barracas do estaleiro. Depois tropeçando num cano de água encoberto pelo capim. E por fim gastámos a pista quase toda. Mas tudo acabou por correr bem. Conduziram-me depois por estrada até às frentes de trabalho onde fiz as filmagens que tinha programado, e ainda voltei a tempo de me sentar à mesa e comer os incontornáveis bifes com ovos estrelados e batatas fritas. Para a descolagem, o Fragoso pediu na obra uma carrinha com conta quilómetros em centenas de metros, e foi percorrer toda a extensão da pista para saber se teria ou não o comprimento suficiente para descolar. Se não tivesse, dizia ele, havia ali máquinas suficientes para acrescentar mais uns metros à pista. Mas isso já implicaria ficarmos ali mais um dia. Mas chegava. ( chegava!?) Despedimo-nos, fomos para a cabeceira da pista e começámos a rolar. O monomotor começa sempre a rolar caído para trás, com a cauda assente no solo, por isso quem vai ao lado do piloto não vê o terreno à frente. O piloto também não vê, mas esse "sabe" o que lhe está pela frente. Eu apenas sabia que lá à frente, logo depois do fim da pista, havia uma mata bastante alta. Quando o piloto achou oportuno, puxou o avião para tirar as rodas do chão. Aí a corneta de alarme começou a tocar, não tínhamos ainda velocidade para subir. Então o Fragoso deixou correr mais uns metros. Mas aí já o avião ia horizontal e eu podia ver a parede de árvores à nossa frente a aproximar-se de nós à velocidade do avião, mais a do meu susto. Mas o Fragoso quando achou oportuno puxou então definitivamente o avião e passámos mesmo à justa por cima das árvores. Afinal a pista tinha ou não o comprimento necessário à descolagem? Primeiro, tinha (teria) se estivesse compactada, lisa e sem capim. Segundo, não tinha, porque o piso era irregular e cheio de capim a retardar o andamento. Isto é, era de bom tamanho mas de fraca qualidade. Não foi esta a minha última viajem naquele avião e com aquele Piloto. Mas outras, como não meteram sustos...

segunda-feira, julho 04, 2005

Deportação


A 23 de Setembro embarcámos no "Carvalho Araújo" rumo a Angra do Heroísmo. O Navio parou em frente a Algés para nos receber, e fomos cerca de 60 presos que saímos da Trafaria num rebocador escoltados pela PSP e por agentes da PVDE. Subimos a bordo, e fomos sendo chamados por ordem alfabética e descendo para o porão pela escada "quebra-costas". Assim se fez a entrega dos presos ao Imediato do Navio. Quando já íamos os últimos três ou quatro a entrar para a do porão, um dos polícias teve a infeliz ideia de dizer ao Imediato: "Estes homens não saem do porão até chegarem ao destino". - O que tu foste dizer! Dar ordens ao Oficial a bordo do "seu Navio"? Resposta do Imediato: "Aqui a bordo há duas pessoas que mandam, o senhor Comandante e eu!" E virando-se para nós disse:" Os senhores podem subir e têm livre trânsito na 3ª Classe". E novamente para os polícias: "Os senhores façam favor de desembarcar que o navio vai largar". Para nós foi uma dupla alegria, pelo vexame dos esbirros e pela nossa "LIBERDADE"!
A bordo viajavam também uns Guarda-Republicanos comandados por um tal Furriel Robalo, que tivemos ocasião de vir a conhecer, infelizmente muito bem. Mas iam sem armas e pareciam mais prisioneiros do que nós. Na véspera da chegada à Madeira foi uma delegação nossa, de que só me lembro do camarada Afonso Pereira, ferroviário e conhecido do meu Pai, pedir ao Comandante que durante a estadia no Funchal nos deixasse permanecer no "castelo da proa" pois seria horrível permanecer no porão durante tantas horas com o calor que fazia com o navio fundeado e, principalmente, sem ver o Funchal. O Comandante exigiu que todos déssemos a palavra de honra em como não tentaríamos evadir-nos enquanto o navio estivesse fundeado. Foi essa condição que os delegados nos vieram transmitir e pedir uma declaração nominal perante eles, delegados, que a transmitiriam ao Comandante. Foi aí que um grande homem se mostrou. Um pescador do Samouco, o camarada Gabriel Pedro. "Eu já estou preso há muito tempo e sempre procurarei fugir, em qualquer circunstância". (O Gabriel Pedro já tinha sido "quase" deportado uns anos, mas quando o navio que o levava cruzava a Barra do Tejo, e não poderia parar, lançou-se da ré para o mar onde outros pescadores o recolheram). Os camaradas voltaram ao Comandante com a resposta, e ele então pediu que lhe levassem o Gabriel. Segundo o Afonso Pereira, o comandante cumprimentou-o pela sua honestidade e coragem e... "prendeu-o" no seu próprio Camarote durante as horas que permanecemos no Funchal. Também durante esse tempo estiveram dois guardas armados no convés junto das escadas de acesso ao Castelo de Proa. A viagem durou cinco dias até Angra do Heroísmo. Foram cinco dias de "LIBERDADE", mas infelizmente para alguns foram os últimos. Foram morrer no Tarrafal.

domingo, julho 03, 2005

na Prisão (2)

Há pouco tempo tive ocasião de ver numa revista uma fotografia de 1918 mostrando os alemães residentes em Portugal que, por causa da Guerra, tinham sido "internados". Fiquei a saber que o tal "internamento" foi exactamente na "minha" caserna, na Fortaleza de São João Baptista, nos Açores. Na fotografia podia ver-se a caserna em toda a sua extensão. Pude reconhecê-la sem sombra de dúvida, com os seus janelões altos do lado esquerdo. Lembro-me que a parede do lado contrário tinha a todo o comprimento um lambril - uma régua de madeira larga e forte pintada de amarelo. As camas enfileiravam-se ao longo das paredes, umas por baixo das janelas, o que permitia aos "utentes" ler na cama, e as outras do outro lado. Nestas era difícil ler deitado, até que houve alguém que se lembrou de virar as cabeceiras para o centro da sala, isto é, para as janelas. Assim se criou o chamado "Movimento dos Invertidos", e devo confessar que também aderi e que não houve discriminação por isso. Mas estou a desviar-me do rumo: O segundo buraco. O que foi aberto na parede à altura das mesas. Aqui é indispensável dizer que, a cerca de um metro e sessenta de altura, corria toda a parede uma prateleira larga onde arrumávamos as malas (que encobriam o buraquinho das comunicações) e por baixo dela havia, também a todo o comprimento, uma régua de cabides de madeira. Essa régua era portanto paralela ao lambril, que coincidia exactamente com a altura das quatro mesas que ocupavam o meio da sala. Depois de acertarmos as coordenadas pelo método já usado no infausto primeiro buraco, começou a escavação. Mas um buraco em 60 centímetros de parede, com largura e altura para passarem pessoas, algumas delas corpulentas, (era impensável não pensar nos gordos), levava tempo e produzia muito entulho. Como não seria possível abrir e fechar o buraco num só dia, e como infelizmente só havia ali ateus, não pudemos entregar-nos nas mãos de Deus. Entregámo-nos portanto ao nosso destino, socorrendo-nos de um capote alentejano, que pendurado por cima, tapava o buraco enquanto íamos ao recreio, não fosse entrar algum guarda, o que não era muito comum. Só quando havia buscas, que eram muito espaçadas aliás, e já tínhamos sofrido uma pouco tempo antes. Havia entre nós três alentejanos que tinham mais capotes, e era nesses que levavam para o recreio os sacos com o entulho que depois espalhavam o mais possível para que se não notasse a diferença de cor da terra. Entretanto "fabricou-se" uma prateleira semelhante às outras, mas esta mais estreita, que serviria para dissimular o buraco. Mas como poderíamos nós instalar uma prateleira num sítio de onde tínhamos removido a parede? Construindo uma parede de pôr e tirar. O buraco tinha sido entretanto acabado e era limitado em cima pela régua de cabides, em baixo pelo lambril, e os lados foram alisados de forma a apresentarem duas rectas como se fossem ombreiras de porta (nestas casernas havia carência de intelectuais mas não faltavam operários). Aproveitámos dos caixotes que nos serviam de escrivaninhas algumas tábuas com as quais fizemos o bocado de parede que faltava. Tinha a dimensão certa para encaixar no vão – já não é correcto chamar buraco a uma obra tão apurada. E aproveitámos fios de serapilheira das enxergas e gesso. Gesso!? Gesso numa prisão!? Começam talvez a tomar-me por mentiroso, ou pior ainda por senil, e a pôr em dúvida o meu relato. Mas não. Encomendámos o gesso a pretexto de fazer umas moldurinhas muito toscas e ingénuas, moldadas em pratinhos metálicos com alguns relevos e que, com fotos ou desenhos, mandávamos através dos guardas a amigos e conterrâneos de outras casernas. Feito o desvio, a bem da credibilidade, voltemos aos fios de serapilheira e... ao gesso. Na caserna do lado "morava" um camarada estucador que transformou tábuas em "paredes", de ambos os lados, mas o gesso era mais escuro e amarelado do que a cal da parede circundante. Para caiar aquele bocado de parede falsa utilizámos o giz do quadro negro da Escola que tínhamos organizado. Eu era professor de primeiras letras, não dava para mais. Como já disse, havia poucos intelectuais, e quem me ensinaria a mim? Mas aprendi nesses dois anos de "escola" muita coisa com outros que de letras sabiam menos do que eu. Mas continuando: Pregámos duas ripas verticais nos lados da "tábua/parede" para servirem de batente e esconderem as juntas entre as duas paredes, a falsa e a verdadeira. Na horizontal colocaram-se três pequenas prateleiras muito delicadas. As ripas verticais tinham em cima e por trás umas chapinhas de zinco que se enfiavam por baixo da ripa dos cabides, e em baixo apoiavam-se no lambril e eram presas com dois pregos curvos, que pareciam estar cravados mas que se tiravam facilmente com a ponta de uma faca para poder retirar a falsa parede e abrir o buraco. Para facilitar a passagem de um lado para o outro, colocávamos uma das mesas encostada ao buraco, que tinha sido feito de propósito a essa altura, e estendidos em cima dela éramos empurrados de um lado e puxados do outro. Tivemos também o cuidado de pôr sempre uma pequena tábua sobre a régua do lambril para que este não fosse gasto pelo roçar das nossas roupas ao passar. E ainda um outro requinte de precaução. Para evitar o som oco, quando os guardas nas buscas batessem na parede à procura de esconderijos, fizemos uma caixa fixada às costas da prateleira que enchemos de entulho para que parecesse maciço. Ficou uma obra perfeita. Até à minha libertação não tinha sido descoberto. Pelo Natal, pedimos que nos deixassem a luz acesa até mais tarde e autorização para fazer uma festa. Mandámos vir através dos guardas uma guitarra que havia na caserna do lado, e à noite o guitarrista passou pelo buraco e veio tocá-la do lado de cá, enfim, na nossa caserna era uma grande algazarra e nas outras o silêncio era sepulcral. Aquela simbiose cerebral de GNR com carcereiro, não deu para desconfiar de nada.

Há ainda a estória de um outro buraco, este um verdadeiro túnel.
Como deixei dito lá mais para trás, também se passava do rés do chão para o primeiro piso, o nosso. A caserna de baixo era composta por três divisões, sendo a de entrada a maior, e era o dormitório. A seguir havia uma pequena divisão assoalhada que servia de sala de jantar. E por fim uma cozinha. Esta tinha várias prateleiras bastante sólidas que eram óptimos degraus para se chegar ao teto, cortar umas tábuas, fazer delas uma tampa. Nós, cá em cima, fizemos o mesmo com o soalho. Assim se estabeleceu a ligação. Foi através desta ligação que eu vim a conhecer o camarada Bento Gonçalves, quando ele chegou de Lisboa. Chegou no barco que cinco dias depois me levou de volta à Liberdade. Ele, infelizmente, seguiu para o Tarrafal de onde só voltou depois de morto.
Enfatizei há pouco o chão assoalhado. É que foi por baixo dele que começámos a abrir um túnel em direcção à muralha, a uns bons vinte metros de distância. Parecia um pouco utópico, pois tinha de se passar por baixo da rua por onde circulavam os guardas e todo o movimento interior da Fortaleza. A ideia era chegar à muralha, desviar uma pedra, sair para o fosso e, com a cumplicidade do exterior, tomar um dos navios da Companhia Insulana. O "Lima" ou o "Carvalho Araújo", e seguir para a América do Sul. Era um belo sonho! Havia ali camaradas condenados a vinte anos de prisão... Como não sonhar? Como viver sem ter esperança? Trabalhámos no duro, e quando digo duro não estou a usar uma figura de retórica. O terreno da ilha é vulcânico, e aquele era um arenito negro que nos estragou rapidamente várias "picadeiras" – uma espécie de martelo aguçado de um dos lados e rombo do outro - que nos foram chegando às mãos (o Virgílio é que sabia como). Ainda ali trabalhei uns meses. Só podíamos fazer alguma coisa desde o anoitecer até às nove e meia da noite. Rendíamo-nos a cada quinze ou vinte minutos. Trabalhávamos agachados e isso dava a dimensão do túnel. Conseguimos passar além da parede do edifício, talvez uns dois a três metros. Nessa altura já havia sempre um camarada a agitar uma folha de cartão para nos ventilar e tinha de se trabalhar com muito cuidado. Havia outro camarada de vigia por uma pequena fenda duma janela que dava conta de quando a sentinela se aproximava na sua ronda habitual. Nessa altura parávamos as pancadas. Em Janeiro de 1936, embarquei para Lisboa. Durante anos não soube nada do túnel, só muito recentemente - mil novecentos e oitenta e tal (!) soube pelo Manuel Baridó que tinham conseguido chegar até à muralha, só faltava retirar uma pedra. Creio que esperavam a ocasião propícia, a chegada de um dos barcos. Só que entretanto um dos presos, homem já bastante velho, após ver a entrada do túnel disse ter medo de passar e denunciou tudo. O Manuel disse-me quem foi, e foi isto que me foi contado, não tive mais confirmação. Eu, que era o mais novo de todos, sou agora um dos poucos sobreviventes.