um drama animal
Angola, 1950.
Não foi um mas sim dois dramas. Do primeiro não assisti ao fim, embora o tenha podido adivinhar. Mesmo os animais selvagens, para quem o homem é o maior e principal inimigo, em circunstâncias extremas, podem sentir-se forçados a recorrer a ele. A velha estória infantil, já perpetuada pelos desenhos animados, do velho leão ferido na pata, bem pode ser corroborada por estas duas que vou contar – não com leões – mas mais modestamente com um antílope e uma zebra. Parti do Lobito ao fim da tarde rumo ao Lubango (Sá da Bandeira) numa carrinha de caixa aberta com o Inspector dos Caminhos de Ferro, Albuquerque Cardoso, e conduzida pelo Nascimento, um colega meu de Escola que não via desde o Exame da 4ª classe e que inesperadamente reencontrei nesse mesmo dia. Do Lobito a Sá da Bandeira eram cerca de 300 quilómetros por uma estrada de terra batida com tantos buracos para baixo como altos para cima. Já bastante de noite entrámos numa zona recentemente ardida. Por ali tinha passado horas antes uma queimada, e tanto de um lado como do outro, estava tudo calcinado e havia ainda restos de árvores a arder e o terreno estava coberto de carvões incandescentes. Nisto surge parado à nossa frente um Olongo. Era um macho magnífico. O Olongo é um dos maiores antílopes, a par da Palanca e do Guelengue, só ultrapassado em corpulência pela Gunga. É lindíssimo e caracteriza-se pelos cornos que são em helicoidais. O Olongo aproximou-se do carro a coxear muito (tinha os cascos queimados, concluímos), chegou junto da janela do lado do condutor e meteu o focinho dentro do carro, o Nascimento chegou a acaricia-lo. Mas não podíamos fazer nada por ele. Seguimos viagem na triste convicção de que em breve acabaria nas garras de um leão. Passado pouco mais de um ano, 1951, estando em Moçambique com o Felipe Solms eramos apoiados por Gustave Gué, suiço, caçador profissional radicado em Moçambique há mais de vinte anos. Caçava principalmente búfalos e elefantes para fornecer carne à companhia "Cena Suggar", para o que tinha licença para abater um determinado número de peças por ano. Dou estes pormenores para caracterizar bem a pessoa, como homem habituado a matar animais, portanto já com uma sensibilidade couraçada, diferente de um qualquer citadino como eu ainda era na altura. O Solms era bastante louco e teve a ideia de fazer um plano em que uma manada de zebras passasse por cima da câmara, e consequentemente sobre o operador que não era tão louco mas quase. Como eu já tinha visto touros a passar cinco vezes sobre o Virgílio Teixeira sem grande perigo e as zebras só passariam uma vez, fui na convera. Portanto, no dia em que se localizou uma grande manada de zebras num "Tando" muito amplo e propício, mandaram abrir uma cova... não xiça! Uma cova não; um buraco onde cabia o tripé da máquina ficando esta ao nível do solo camuflada com capim. E eu metido no buraco, meio sentado. Muni-me de um livro policial para me entreter durante a espera e aguardei. Claro que quando as zebras chegassem junto, isto é, quase junto, eu me baixaria mais. Enquanto isso, lá ao longe, via a manada correndo de um lado para o outro perseguida pelos pisteiros que procuravam empurrá-la na nossa direcção. Isto é, na minha! Mas esta foi uma daquelas ocasiões em que deus escreveu direito por linhas tortas. (ainda não percebi porque não endireita primeiro as linhas e escreve depois). O vento, O BENDITO VENTO, mudara e passara a soprar de mim para as zebras. Daí que elas nunca mais viessem para o lado de onde vinha o cheiro do "inimigo". Passado um ror de tempo em que li o livro quase todo, o Gué e o Solms desistiram da ideia e vieram buscar-me com a carrinha. No caminho, e quando passávamos pela zona onde as zebras tinham andado em grande correria, sai de trás de um morro de "Muxém" (em Angola chama-se Salalé, e é a formiga de asa) uma zebra ainda jovem, arrastando penosamente uma perna. Tinham passado por cima dela e sofrera fractura da anca. Pois arrastando-se veio na direcção do carro em busca de... nem ela sabia o quê. E o Gué, aquele homem calejado por anos de profissão, disse-nos: "Vou fazer uma coisa que me custa muito, mas não há remédio". Saiu da carrinha com a carabina, e nós, o Solms e eu, só ouvimos o tiro, nem olhámos. E nenhum de nós três disse palavra dali até ao acampamento. Também agora não vale a pena dizer mais nada.
Não foi um mas sim dois dramas. Do primeiro não assisti ao fim, embora o tenha podido adivinhar. Mesmo os animais selvagens, para quem o homem é o maior e principal inimigo, em circunstâncias extremas, podem sentir-se forçados a recorrer a ele. A velha estória infantil, já perpetuada pelos desenhos animados, do velho leão ferido na pata, bem pode ser corroborada por estas duas que vou contar – não com leões – mas mais modestamente com um antílope e uma zebra. Parti do Lobito ao fim da tarde rumo ao Lubango (Sá da Bandeira) numa carrinha de caixa aberta com o Inspector dos Caminhos de Ferro, Albuquerque Cardoso, e conduzida pelo Nascimento, um colega meu de Escola que não via desde o Exame da 4ª classe e que inesperadamente reencontrei nesse mesmo dia. Do Lobito a Sá da Bandeira eram cerca de 300 quilómetros por uma estrada de terra batida com tantos buracos para baixo como altos para cima. Já bastante de noite entrámos numa zona recentemente ardida. Por ali tinha passado horas antes uma queimada, e tanto de um lado como do outro, estava tudo calcinado e havia ainda restos de árvores a arder e o terreno estava coberto de carvões incandescentes. Nisto surge parado à nossa frente um Olongo. Era um macho magnífico. O Olongo é um dos maiores antílopes, a par da Palanca e do Guelengue, só ultrapassado em corpulência pela Gunga. É lindíssimo e caracteriza-se pelos cornos que são em helicoidais. O Olongo aproximou-se do carro a coxear muito (tinha os cascos queimados, concluímos), chegou junto da janela do lado do condutor e meteu o focinho dentro do carro, o Nascimento chegou a acaricia-lo. Mas não podíamos fazer nada por ele. Seguimos viagem na triste convicção de que em breve acabaria nas garras de um leão. Passado pouco mais de um ano, 1951, estando em Moçambique com o Felipe Solms eramos apoiados por Gustave Gué, suiço, caçador profissional radicado em Moçambique há mais de vinte anos. Caçava principalmente búfalos e elefantes para fornecer carne à companhia "Cena Suggar", para o que tinha licença para abater um determinado número de peças por ano. Dou estes pormenores para caracterizar bem a pessoa, como homem habituado a matar animais, portanto já com uma sensibilidade couraçada, diferente de um qualquer citadino como eu ainda era na altura. O Solms era bastante louco e teve a ideia de fazer um plano em que uma manada de zebras passasse por cima da câmara, e consequentemente sobre o operador que não era tão louco mas quase. Como eu já tinha visto touros a passar cinco vezes sobre o Virgílio Teixeira sem grande perigo e as zebras só passariam uma vez, fui na convera. Portanto, no dia em que se localizou uma grande manada de zebras num "Tando" muito amplo e propício, mandaram abrir uma cova... não xiça! Uma cova não; um buraco onde cabia o tripé da máquina ficando esta ao nível do solo camuflada com capim. E eu metido no buraco, meio sentado. Muni-me de um livro policial para me entreter durante a espera e aguardei. Claro que quando as zebras chegassem junto, isto é, quase junto, eu me baixaria mais. Enquanto isso, lá ao longe, via a manada correndo de um lado para o outro perseguida pelos pisteiros que procuravam empurrá-la na nossa direcção. Isto é, na minha! Mas esta foi uma daquelas ocasiões em que deus escreveu direito por linhas tortas. (ainda não percebi porque não endireita primeiro as linhas e escreve depois). O vento, O BENDITO VENTO, mudara e passara a soprar de mim para as zebras. Daí que elas nunca mais viessem para o lado de onde vinha o cheiro do "inimigo". Passado um ror de tempo em que li o livro quase todo, o Gué e o Solms desistiram da ideia e vieram buscar-me com a carrinha. No caminho, e quando passávamos pela zona onde as zebras tinham andado em grande correria, sai de trás de um morro de "Muxém" (em Angola chama-se Salalé, e é a formiga de asa) uma zebra ainda jovem, arrastando penosamente uma perna. Tinham passado por cima dela e sofrera fractura da anca. Pois arrastando-se veio na direcção do carro em busca de... nem ela sabia o quê. E o Gué, aquele homem calejado por anos de profissão, disse-nos: "Vou fazer uma coisa que me custa muito, mas não há remédio". Saiu da carrinha com a carabina, e nós, o Solms e eu, só ouvimos o tiro, nem olhámos. E nenhum de nós três disse palavra dali até ao acampamento. Também agora não vale a pena dizer mais nada.
Tinha sido atingido na cabeça, e não sobreviveu. Foi um duro golpe para todos nós. Era preciso regressar a bordo o mais rapidamente possível. Teriamos de percorrer duas ou três centenas de metros, com o corpo do Fuzileiro às costas. Este rapaz, conhecido entre os camaradas por "Sabóia", nome da sua terra natal, era um dos Fuzos que eu conhecera meses antes no Zaire. Só restavam agora quatro fuzileiros, visto que dois tinham ficado a bordo por segurança. Então tomou-se única solução possível.Um dos civis tinha de auxiliar no transporte do corpo. O Raul Moreira estava naturalmente excluído, tinha uma problema numa perna e coxeava muito. Coube-me a mim e a um dos militares essa difícil e dolorosa missão, deixando livre outro homem para fazer a nossa protecção até alcançar a barcaça. Esta protecção, foi assegurada apenas por cinco armas: O Capitão, o sargento, o furriel e dois fuzileiros. Não vou descrever a consternação a bordo e depois no Rivungo. No dia seguinte veio um avião com um caixão de chumbo e levou o pobre Sabóia. O tempo que o CITA, Centro de Informação e Turismo, me concedera, esgotou –se, e tive de regressar a Luanda deixando os meus companheiros continuarem os trabalhos sozinhos. A final, tínhamos vindo ao Rivungo para cobrir uma cerimónia militar, afastada quase duzentos quilómetros da base, numa fronteira hostil, tendo pernoitado numa sanzala abandonada, e nada de grave tinha acontecido. Agora, numa breve patrulha, mesmo à porta de casa, e surgiu a tragédia que roubou a vida a um jovem. "Malhas que o Destino tece"...
O Luis baixou-se para o apanhar e teve de limpar o sangue que escorria dos dedos para não o sujar. "Olha para mim", disse eu e ele voltou-se para trás, e riu-se. A fotografia está um bocado desfocada, devido à pouca distância, mas garanto que aquele não é um esgar, é mesmo um impossível sorriso. A paciência do Comandante Viegas, para nos aturar, foi de Santo. Só então pôs os auscultadores, que o barulho era enorme, e pediu para Novo Redondo um transporte do Campo para a Cidade. O nosso destino, à partida, era o Huambo, a cerca de trezentos quilómetros, para Leste. Alterando a rota, apontámos a Novo Redondo, o ponto mais perto onde poderiamos aterrar. Chegamos e já se aproximava um carro para nos levar. Mas o Comandante com o aparelho já parado, deixou os motores a trabalhar e comunicou com Luanda, pedindo que lhe trouxecem outro parabrisas...
Dali rumamos ao Hospital, eu que não tinha praticamente nada, um braço inchado, um arranhão no sobreolho, fui a uma loja comprar uma camisa para o Luis, a que ele trazia, nem valia a pena lavar. Foi para o lixo. Entretanto fiquei à espera no Hospital que tratassem do meu colega, o que levou quase duas horas. Passeando no corredor, reparei, depois de muito tempo passado, que tinha a camisa quase fora das calças. Vou arranjar-me e... encontro dentro da camisa um "siroco", respiradoro em alumínio, que tinha sido arrancado do cokpit junto com o meio parabrisas do lado direito. Foi só aí que eu me apercebi do abalo que sofrera. Entretanto o Luis acabou de ser tratado ao ferimeto da cabeça, felizmenmte ligeiro, um golpe feio num lábio, braços e peito feridos pelo vidro que lhe tinha batido em cheio. Dizia-me ele depois: -Obrigadinho pela gentileza da cedência do "lugar do morto". A seguir fomos para o Hotel que já era nosso conhecido. Bem, foi uma agitação e ao mesmo tempo um grande espanto, porque, infelizmente, quem sofre um desastre de avião, não vai tranquilamente almoçar ao Hotel. Entretanto víramos numa vitrine uma mola para prender papéis. Era em prata e representava muito a propósito, uma cabeça de pato com olhos de esmeralda. Quase dava para acreditar que era a mesma que o pássaro não tinha conseguido levar com ele na última viagem. Iamos morrendo a rir, e como o Comandante Viegas não a tinha visto, mandámos embalar e ao almoço, veio um empregado entregar-lhe o bonito embrulho. Ficou muito comovido com a prenda riu-se da coincidência. Foi um bom momento de alegria. À tarde chegou um avião trazendo dois técnicos e o meio parabrisas que fixaram no lugar com... fita adesiva, o que não me admirou, (eu próprio já tinha remendado um pneu com adesivo clínico). Acabada a obra, que não ficou muito bonita, conforme se pode ver na fotografia, mas era segura. Estava chegada a altura de regressar a Luanda, e o Comandante queria que nós viajassemos no outro avião. Isso para nós era impensável e, jocosamente usamos um argumento estatístico : "É muitíssimo remota a hipótese de um mesmo avião, com os mesmos tripulantes, os mesmos passageiros, e na mesma rota, tenha dois acidentes no mesmo dia. E assim voltamos a Luanda, e dias depois retomamos a viagem mas, desta vez directos a Nova Lisboa, onde fizemos um bom filme de publicidade.