Retalhos da vida de um militar
Vénia a FernandoNamora
Cidadela de Cascais 1937. Grupo de Artilharia Contra Aeronaves. Unidade dita de Elite, ou não albergasse no seu seio o General Carmona. Era uma Unidade Militar de pequeno efectivo – cerca de trezentos homens – em quatro Baterias. Eu era amanuense, e ouvia muitas conversas que os oficiais mantinham com os seus camaradas da Secretaria. A meio do ano comecei a ouvir falar num Oficial que vinha para a Unidade e de quem os outros traçavam os maiores encómios, do ponto de vista deles, militar portanto: competente, disciplinador, corajoso, não quero mentir (já lá vão tantos anos) mas teria andado na Guerra de Espanha. Tudo isto não era de molde a dar tranquilidade ao restrito número de camaradas meus, de confiança, a quem transmiti os receios que em certa medida também eram meus, apesar de, não andando "à linha", estar mais resguardado. Pelo menos eu assim julgava. Até que chegou o dito Oficial, e ficámos todos estarrecidos. Fardava como um Oficial Prussiano (conhecíamos pelos Jornais de Actualidades Cinematográficos ) o físico dava ajuda: naturalmente elegante, parecia ter nascido dentro do
uniforme. Barrete com a testeira levantada, quase na vertical e onde brilhavam as Armas de Artilharia. Pala muito curta, descida sobre os olhos, num dos quais faiscava um monóculo. Mas o que mais me saltou à vista – premonição, talvez – foram as botas altas elegantíssimas. Se parecia ter nascido dentro da farda, não sei que dizer daquele par de botas altas, negras, muito lustrosas que me ficaram até hoje na memória. Era o Tenente Carlos Kol d’Alvarenga. De uma família de Militares que se prolonga até hoje, e de que conheci em Luanda um Oficial (da FAP ou dos Paraquedistas). Muito cumpridor do Regulamento, o que só abonava em seu favor como militar, mas que não era o que os soldados mais desejavam Quando estava "de dia", era o pânico: "Ó Malta. Hoje está o Alvarenga! de Oficial de Dia!" Mas não acontecia nada de grave, a “malta” não facilitava. Fazia várias rondas às sentinelas. Já se sabia que não se podia fechar os olhos. Tão longo exórdio porquê ? jJustamente para chegar ao episódio que pretendo relatar, e que não teria o mínimo interesse sem antes se procurar traçar o retracto do protagonista.
A rotina do quartel começava pelo bárbaro costume da Alvorada às seis horas da madrugada. Seguiam-se a formatura, a chamada e a trôpega marcha até à casa de banho no"longínquo" lado-de–lá-da –Parada. Conforme já disse, eu era cabo amanuense, na Secretaria, cuja abertura
era às nove horas. Para quê então obrigar-me a uma madrugada para depois gastar três inúteis horas para "pegar ao trabalho."? Assim, quando o sargento de dia era simpático, e alguns eram-no, não só de sua nature (menos) mas porque eu lhes dactilografava documentos dos seus cursos (mais); se era simpático, dizia eu, deixava-me ficar deitado. Por volta das sete e meia oito horas, levantáva-me, fazia mais tranquila e detalhadamente as minhas abluções. Depois ia pedir a chave ao Oficial de dia e começava o meu dia de trabalho. Sabia de véspera qual o sargento de serviço e, quando era caso disso, fechava a Secretaria mas deixava só encostada a porta das traseiras por onde a formatura passaria na madrugada seguinte. À Alvorada, vestia as calças, punha o capote pelos ombros e escondia debaixo dele o cabeçalho (instrumento de tortura em que os soldados daquele tempo deitavamos a cabeça). Quando passava diante da porta encostada, esgueirava-me lá para dentro. Uma vez conseguido o mais difícil, juntava a secretária do Sargento Ajudante com a minha, deitava-me, cobria-me com o capote e dormia o sono da manhã mau grado a dureza da "almofada". Mas a fatalidade atingiu-me. Subitamente sou despertado paelo ruído da chave na porta da frente. Só podia ser o Oficial de Dia, o Tenente
Alvarenga. Não sei se continuei a dormir se foi uma síncope que me deu. De qualquer forma, consciente ou inconscientemente tomei a decisão certa: deixei-me ficar, e só não rezei porque não sabia. As duas salas, eram contíguas e não havia porta dividi-las. Os passos marciais chegaram a meio da primeira sala. Só pude ver umas elegantes botas altas, e "elas" viram-me a mim e estacaram, os passos marciais passaram a "pé-ante-pé". Continuei com a cabeça debaixo do capote e esperei angustiado pelo que haveria de vir. Passaram por mim sempre em bicos de pés foram ao armário dos impressos, serviram-se e refizeram o caminho anterior passando novamente por mim que estava pouco menos que gelado. Mal a porta da frente se fechou dei um salto e fugi porta fora . Quando fui capaz de voltar a pensar, perguntei a mim próprio: Como é que eu vou pedir a chave de uma casa onde estava a dormir abusivamente ? Mas como a situação não tinha remédio. Ajustei bem o uniforme de trabalho, pus o barrete "como eles gostavam", engraxei as botas e endireitei as grevas "como eles gostavam" e finalmente, diante do enorme espelho da Caserna, ensaiei uma continência bem marcada, uma bater de calcanhares bem vigoroso e, o mais difícil, falar com voz forte e decidida. Tudo ao gosto do tenente Alvarenga. E lá fui: - porta do Gabinete.- Paragem para tomar fõlego. Continência e grande calcanheirada simultâneas; saíram bem. Voz firme quanto pude:
"MEU TENENTE DÁ LICENÇA?" Entra. "Venho buscar a chave da Secretaria, meu Tenente." Deu-me a chave que recebi numa mão pouco firme. Saída com o mesmo cerimonial da entrada . Tudo isto me parecia surrial. Assim que pude conseguir a tranquilidade que me permitisse pensar; procurei perceber aquilo que, se me contassem, teria alguma dificuldade em acreditar. O que é que se teria passado na cabeça daquele Militar rigoroso e disciplinador ? Vou procurar imaginar o que o Tenente pensou:"Tenho a chave na minha mão, a Secretaria está fechada e
esta gajo vem para aqui dormir. Se o apanho não passa sem uma grande "porrada". Mas se não me vir não sabe que eu o vi. Vamos lá passar devagarinho". Enquanto procurei sondar o que se teria passado naquela cabeça de militar cheguei à seguinte conclusão: não foi na cabeça do Tenente de Artilharia Carlos Kol de Alvarenga com o seu uniforme à Prusasiana que tudo se terá passado. Foi no CORAÇÃO.
Cidadela de Cascais 1937. Grupo de Artilharia Contra Aeronaves. Unidade dita de Elite, ou não albergasse no seu seio o General Carmona. Era uma Unidade Militar de pequeno efectivo – cerca de trezentos homens – em quatro Baterias. Eu era amanuense, e ouvia muitas conversas que os oficiais mantinham com os seus camaradas da Secretaria. A meio do ano comecei a ouvir falar num Oficial que vinha para a Unidade e de quem os outros traçavam os maiores encómios, do ponto de vista deles, militar portanto: competente, disciplinador, corajoso, não quero mentir (já lá vão tantos anos) mas teria andado na Guerra de Espanha. Tudo isto não era de molde a dar tranquilidade ao restrito número de camaradas meus, de confiança, a quem transmiti os receios que em certa medida também eram meus, apesar de, não andando "à linha", estar mais resguardado. Pelo menos eu assim julgava. Até que chegou o dito Oficial, e ficámos todos estarrecidos. Fardava como um Oficial Prussiano (conhecíamos pelos Jornais de Actualidades Cinematográficos ) o físico dava ajuda: naturalmente elegante, parecia ter nascido dentro do
uniforme. Barrete com a testeira levantada, quase na vertical e onde brilhavam as Armas de Artilharia. Pala muito curta, descida sobre os olhos, num dos quais faiscava um monóculo. Mas o que mais me saltou à vista – premonição, talvez – foram as botas altas elegantíssimas. Se parecia ter nascido dentro da farda, não sei que dizer daquele par de botas altas, negras, muito lustrosas que me ficaram até hoje na memória. Era o Tenente Carlos Kol d’Alvarenga. De uma família de Militares que se prolonga até hoje, e de que conheci em Luanda um Oficial (da FAP ou dos Paraquedistas). Muito cumpridor do Regulamento, o que só abonava em seu favor como militar, mas que não era o que os soldados mais desejavam Quando estava "de dia", era o pânico: "Ó Malta. Hoje está o Alvarenga! de Oficial de Dia!" Mas não acontecia nada de grave, a “malta” não facilitava. Fazia várias rondas às sentinelas. Já se sabia que não se podia fechar os olhos. Tão longo exórdio porquê ? jJustamente para chegar ao episódio que pretendo relatar, e que não teria o mínimo interesse sem antes se procurar traçar o retracto do protagonista.
A rotina do quartel começava pelo bárbaro costume da Alvorada às seis horas da madrugada. Seguiam-se a formatura, a chamada e a trôpega marcha até à casa de banho no"longínquo" lado-de–lá-da –Parada. Conforme já disse, eu era cabo amanuense, na Secretaria, cuja abertura
era às nove horas. Para quê então obrigar-me a uma madrugada para depois gastar três inúteis horas para "pegar ao trabalho."? Assim, quando o sargento de dia era simpático, e alguns eram-no, não só de sua nature (menos) mas porque eu lhes dactilografava documentos dos seus cursos (mais); se era simpático, dizia eu, deixava-me ficar deitado. Por volta das sete e meia oito horas, levantáva-me, fazia mais tranquila e detalhadamente as minhas abluções. Depois ia pedir a chave ao Oficial de dia e começava o meu dia de trabalho. Sabia de véspera qual o sargento de serviço e, quando era caso disso, fechava a Secretaria mas deixava só encostada a porta das traseiras por onde a formatura passaria na madrugada seguinte. À Alvorada, vestia as calças, punha o capote pelos ombros e escondia debaixo dele o cabeçalho (instrumento de tortura em que os soldados daquele tempo deitavamos a cabeça). Quando passava diante da porta encostada, esgueirava-me lá para dentro. Uma vez conseguido o mais difícil, juntava a secretária do Sargento Ajudante com a minha, deitava-me, cobria-me com o capote e dormia o sono da manhã mau grado a dureza da "almofada". Mas a fatalidade atingiu-me. Subitamente sou despertado paelo ruído da chave na porta da frente. Só podia ser o Oficial de Dia, o Tenente
Alvarenga. Não sei se continuei a dormir se foi uma síncope que me deu. De qualquer forma, consciente ou inconscientemente tomei a decisão certa: deixei-me ficar, e só não rezei porque não sabia. As duas salas, eram contíguas e não havia porta dividi-las. Os passos marciais chegaram a meio da primeira sala. Só pude ver umas elegantes botas altas, e "elas" viram-me a mim e estacaram, os passos marciais passaram a "pé-ante-pé". Continuei com a cabeça debaixo do capote e esperei angustiado pelo que haveria de vir. Passaram por mim sempre em bicos de pés foram ao armário dos impressos, serviram-se e refizeram o caminho anterior passando novamente por mim que estava pouco menos que gelado. Mal a porta da frente se fechou dei um salto e fugi porta fora . Quando fui capaz de voltar a pensar, perguntei a mim próprio: Como é que eu vou pedir a chave de uma casa onde estava a dormir abusivamente ? Mas como a situação não tinha remédio. Ajustei bem o uniforme de trabalho, pus o barrete "como eles gostavam", engraxei as botas e endireitei as grevas "como eles gostavam" e finalmente, diante do enorme espelho da Caserna, ensaiei uma continência bem marcada, uma bater de calcanhares bem vigoroso e, o mais difícil, falar com voz forte e decidida. Tudo ao gosto do tenente Alvarenga. E lá fui: - porta do Gabinete.- Paragem para tomar fõlego. Continência e grande calcanheirada simultâneas; saíram bem. Voz firme quanto pude:
"MEU TENENTE DÁ LICENÇA?" Entra. "Venho buscar a chave da Secretaria, meu Tenente." Deu-me a chave que recebi numa mão pouco firme. Saída com o mesmo cerimonial da entrada . Tudo isto me parecia surrial. Assim que pude conseguir a tranquilidade que me permitisse pensar; procurei perceber aquilo que, se me contassem, teria alguma dificuldade em acreditar. O que é que se teria passado na cabeça daquele Militar rigoroso e disciplinador ? Vou procurar imaginar o que o Tenente pensou:"Tenho a chave na minha mão, a Secretaria está fechada e
esta gajo vem para aqui dormir. Se o apanho não passa sem uma grande "porrada". Mas se não me vir não sabe que eu o vi. Vamos lá passar devagarinho". Enquanto procurei sondar o que se teria passado naquela cabeça de militar cheguei à seguinte conclusão: não foi na cabeça do Tenente de Artilharia Carlos Kol de Alvarenga com o seu uniforme à Prusasiana que tudo se terá passado. Foi no CORAÇÃO.
Adenda:

Este é o retrato do coronel Alvarenga, que me atrevi a retirar do blog de um dos seus netos.